É preciso constituir SAF para se valer da recuperação judicial e extrajudicial no futebol?


É preciso constituir SAF para se valer da recuperação judicial e extrajudicial no futebol?


A Lei 14.193/2021 (“Lei da SAF”) foi editada para salvaguarda do futebol brasileiro, trazendo junto com sua nova estrutura importantes mecanismos de restruturação das dívidas, com previsão de institutos que garantem segurança jurídica à atração de investimentos. Mas, engana-se quem pensa que suas novidades não alcançariam os clubes que não optarem pelo novo modelo societário. 

Há uma inovação promovida pelo artigo 25 da Lei da SAF, concedendo expressamente legitimidade ao clube que ainda esteja constituído sob a forma de associação civil para requerer Recuperação Judicial e Extrajudicial, sem necessidade de constituição de SAF. Trata-se de verdadeira mudança de paradigma, que produzirá grandes efeitos tanto no meio futebolístico, quanto no jurídico.

E tudo isso porque o artigo 251 da Lei da SAF tratou exatamente de legitimar o clube de futebol para a propositura de Recuperação Judicial e Extrajudicial, ou seja, caso o clube opte por manter a tradicional estrutura de associação civil (artigo 1º, §1º, I da Lei da SAF2), ele pode se valer da Recuperação Judicial ou Extrajudicial, como expressamente autorizado pelos artigos 13 e 25 da Lei da SAF.

São inegáveis os benefícios da Recuperação Judicial e Extrajudicial na restruturação de dívidas e, como bem se sabe, o futebol brasileiro, infelizmente, tornou-se uma atividade em que os principais players (os clubes) estão endividados, colocando em risco a própria existência do setor. 

Assim, as possibilidades criadas pela Lei da SAF somaram-se aos já existentes institutos da Recuperação Judicial e a Extrajudicial para equacionamento das dívidas e pagamento dos credores de forma coordenada, prestigiando o próprio soerguimento do clube, tenha ele constituído SAF ou não.

A relevância e impacto do artigo 25 da Lei da SAF, possibilitando o ajuizamento de Recuperação Judicial e Extrajudicial, mesmo sem constituição de uma SAF, é talvez o maior sinal de que a legislação veio para recuperar o combalido cenário econômico que permeia o futebol brasileiro, já que abre campo para importantes instrumentos capazes de contribuir com a superação da crise econômico-financeira das associações civis futebolísticas.

A previsão expressa da legitimação do clube veio para resolver um problema que permeava o Judiciário brasileiro há bons anos, pois, até então, uma enorme discussão se travava em torno da possibilidade de associações civis pedirem Recuperação Judicial e Extrajudicial, dando contornos de incerteza e, especialmente, insegurança jurídica à questão. 

Isso porque a possibilidade de utilização desses institutos é regulada por legislação distinta – a Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005) – que, por sua vez, limita a Recuperação Judicial e Extrajudicial à “sociedade empresária” e, como os clubes de futebol do Brasil são, em sua maioria, constituídos em forma de associação civil (figura distinta), não se enquadravam no requisito basilar.

Embora alguns clubes já tenham formulado o pedido valendo-se da alteração trazida pelo artigo 25 da Lei da SAF, que legitima extraordinariamente a associação civil, nota-se que a opção trazida pelo artigo 353 da Lei da SAF – que equipara a associação civil que desenvolve atividade futebolística à sociedade empresária, desde que inscrita no Registro Público de Empresas Mercantis – também resolve a questão, com segurança adicional ao clube que queira exercer o direito de propor Recuperação Judicial. 

Nessa hipótese, a associação reestruturada como clube-empresa, com sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis a cargo da Junta Comercial competente, nos termos do artigo 35 da Lei da SAF, estaria então equiparada à sociedade empresária, permitindo a perfeita subsunção da natureza do clube à hipótese permissiva da Lei de Recuperação Judicial e Falência.

Importante esclarecer que, muito embora uma SAF também possa vir a necessitar do remédio, sua constituição em si tem natureza de “sociedade empresária” e lhe permite fazê-lo, mas a inovação que aqui merece destaque é que agora existe a possibilidade de o clube de futebol também utilizar do benefício para reestruturar seu passivo, seja paralelamente à constituição da SAF ou independente dessa opção. 

Isso motivou várias associações civis futebolísticas – sem a constituição de SAF – a apresentarem seus pedidos de Recuperação Judicial, dentre elas, a Chapecoense, o Coritiba e o Joinville, todos concedidos de imediato sem a batalha jurídica que o Figueirense precisou se submeter no passado.

No mesmo rumo, clubes que optarem pela constituição da SAF também podem utilizar dos remédios de restruturação e seguir, em paralelo à Sociedade Anônima Futebol, com pedidos de Recuperação Judicial ou Extrajudicial para reorganização da associação civil. 

Esse foi o caminho que trilhou o Cruzeiro, em que sua Associação Civil já apresentou pedido de Recuperação Judicial, que está sob análise da 1ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte/MG, no qual se alegou que o clube enfrenta uma severa crise econômico-financeira, demonstrando a queda de receitas, a natureza das dívidas acumuladas em obrigações operacionais, trabalhistas e fiscais, mas sustentando que o clube é financeiramente viável, não podendo perder de vista sua função social; tudo alicerçado no princípio da preservação, princípio basilar do instituto da Recuperação Judicial.

A opção de requerer a Recuperação Judicial ou Extrajudicial exercida por clube que tenha constituído a SAF apresenta boas possibilidades, pois o artigo 10º4 da Lei da 14.193/2021 cria receitas vinculadas da SAF que devem ser convertidas em fonte de pagamento de obrigações da associação, anteriores à constituição do modelo societário próprio do futebol. 

Assim, ao lado do Regime Centralizado das Execuções que também se vale dessa vinculação, o clube de futebol que tenha constituído a SAF detém a possibilidade de usufruir e destinar receita da nova empresa para o pagamento de seus credores, além de proteger a operação do futebol do passivo existente antes da constituição da SAF.

A esses benefícios, somam-se aqueles próprios da Recuperação Judicial ou Extrajudicial de clubes de futebol, pois a Lei de Recuperação Judicial e Falência prevê a suspensão de todas as ações ou execuções pelo período de 180 dias, prorrogável por igual período (chamado de stay period), com possibilidade de aplicação de deságio agressivo, alongamento do perfil da dívida, dentre tantas outras medidas que poderão ser objeto de deliberação perante o Juízo Recuperacional.

Por outro lado, a opção pela Recuperação Judicial traz riscos igualmente agressivos, como a possibilidade de apresentação de plano de recuperação alternativo pelos próprios credores, a quem compete aprovar qualquer plano que for apresentado, mas, especialmente, a possibilidade de convolação em falência, se descumprido algum ponto do plano de pagamento.

Daí porque tem-se também a Recuperação Extrajudicial (usada pelo Figueirense) como alternativa ao modelo judicial para impedir os riscos, mas ao mesmo tempo utilizar os benefícios, pois apresenta a vantagem de ser mais célere, simples e, sem dúvidas, sendo menos onerosa para o devedor. Embora não permita incluir toda a dívida do clube (excluindo, por exemplo, as dívidas tributárias e exigindo negociação coletiva com o sindicato para as dívidas trabalhistas, exatamente onde reside fragilidade nas administrações do futebol), é menos burocrática e dispensa certas formalidades, possibilitando uma maior autonomia na celebração dos acordos e permitindo que o plano de recuperação seja negociado e celebrado apenas com alguns credores, sem afetar a composição com as demais classes. 

Aos clubes de futebol que não optarem pela constituição de SAF, por sua vez, no campo da Recuperação Judicial ou Extrajudicial, far-se-á necessário formular um plano de pagamentos baseado unicamente nas receitas próprias, sendo certo que, diante do cenário quase catastrófico em que alguns clubes se encontram, dificilmente conseguiriam passar segurança aos credores e atrair investimentos para criar receitas, podendo, por isso mesmo, assumir riscos como a decretação de falência. 

Nota-se que a legitimação regulamentada pela lei traz possibilidades significativas, não como remédio absoluto e sim como a disponibilização de mais instrumentos ao clube, mas que dependerá de uma boa análise do perfil de dívidas da associação, da constituição ou não de SAF e de outros elementos para, então, definir-se sobre o melhor caminho ou até mesmo a respeito da adoção de mais de um instrumento quando for possível conciliá-los. Como se percebe, mesmo que, para alguns clubes de futebol brasileiros, o cronômetro se aproxime dos 45 minutos do segundo tempo, diante do elevado passivo financeiro acumulado, a bola está em jogo, com algumas possibilidades de composição e reescalonamento de dívidas, sendo necessário um estudo aprofundado sobre o perfil da dívida e qual a melhor estratégia para a superação da crise econômico-financeira, para que não seja afetado o maior ativo dos clubes – sua torcida e a alegria a eles promovida por meio do futebol.

Portanto, considerando que, antes da vigência da Lei da SAF, o entendimento jurisprudencial nos tribunais brasileiros não era unânime, embora fosse possível a associação civil apresentar o pedido de Recuperação Judicial ou Extrajudicial, inexistia  segurança jurídica concreta que permitia o deferimento do pedido, de forma que a inovação trazida pela Lei da SAF promoveu um avanço em relação à efetiva elevação do futebol brasileiro ao patamar de clubes internacionais, com uma maior capacidade de gestão dos ativos e busca por melhores resultados.

Bibliografia

1 Art. 25.  O clube, ao optar pela alternativa do inciso II do caput do art. 13 desta Lei, e por exercer atividade econômica, é admitido como parte legítima para requerer a recuperação judicial ou extrajudicial, submetendo-se à Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

2 Art. 1º  [...]

§ 1º  Para os fins desta Lei, considera-se:

I - clube: associação civil, regida pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dedicada ao fomento e à prática do futebol;

3 Art. 35.  O art. 971 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:

“Art. 971. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo à associação que desenvolva atividade futebolística em caráter habitual e profissional, caso em que, com a inscrição, será considerada empresária, para todos os efeitos.” (NR)

4 Art. 10.  O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:

I - por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;

II - por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.