Doação e Fraude: Dispensa de Registro de Penhora | Relativização da Lei de Concentração?


Doação e Fraude: Dispensa de Registro de Penhora | Relativização da Lei de Concentração?


Por Danielle Chipranski Cavalcante e Alessandra Lima Ganz 

O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.” Esse é teor da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), reforçado pela própria Lei de Concentração de Atos na Matrícula – nº 14.825/2024. Na prática, como muito se vê, existem diversas nuances que podem alterar a percepção do alcance dessa regra. Essa é a tônica deste artigo. 

A alienação ou oneração do bem são consideradas fraude à execução quando: (i) sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória; (ii) tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução; (iii) quando o bem tiver sido objeto de constrição judicial nos autos do processo no qual foi suscitada a fraude; (iv) quando, no momento da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência. 

Conforme inclusive divulgado pelo Informativo de Jurisprudência do STJ de nº. 716, de 8 de novembro de 2021, a Corte apontou:

“Esta Corte tem entendimento sedimentado no sentido de que a inscrição da penhora no registro do bem não constitui elemento integrativo do ato, mas sim requisito de eficácia perante terceiros. Por essa razão, o prévio registro da penhora do bem constrito gera presunção absoluta (juris et de jure) de conhecimento para terceiros e, portanto, de fraude à execução caso o bem seja alienado ou onerado após a averbação (art. 659, § 4º, do CPC/1973; art. 844 do CPC/2015). Presunção essa que também é aplicável à hipótese na qual o credor providenciou a averbação, à margem do registro, da pendência de ação de execução (art. 615-A, § 3º, do CPC/73; art. 828, § 4º, do CPC/2015). 

Por outro lado, se o bem se sujeitar a registro e a penhora ou a ação de execução não tiver sido averbada no respectivo registro, tal circunstância não obsta, prima facie, o reconhecimento da fraude à execução. Nesse caso, entretanto, caberá ao credor comprovar a má-fé do terceiro; vale dizer, de que o adquirente tinha conhecimento acerca da pendência do processo. Essa orientação é consolidada na jurisprudência deste Tribunal Superior e está cristalizada na Súmula 375 do STJ e no julgamento do Tema 243”.

Oportuno lembrar que quando julgamento do Tema Repetitivo 243¹, firmou-se o seguinte entendimento:

“1.1. É indispensável citação válida para configuração da fraude de execução, ressalvada a hipótese prevista no § 3º do art. 615-A do CPC.

1.2. O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente (Súmula n. 375/STJ).

1.3. A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova.

1.4. Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena de torna-se letra morta o disposto no art. 659, § 4º, do CPC².

1.5. Conforme previsto no § 3º do art. 615-A do CPC, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após averbação referida no dispositivo.”

Vale ressaltar que, conforme expressa ressalva, a Lei de Concentração de Atos na Matrícula não se aplica aos casos de falência e recuperação judicial (artigos 129 e 130 da Lei nº 11.101/2005), bem como aos débitos (fiscais) inscritos em dívida ativa. Da mesma maneira, situações como usucapião, acessão, desapropriação ou direito de preempção não estão abrangidas pela Lei. Contudo, para todas as demais medidas judiciais, ainda que não tratem, diretamente, da eficácia no negócio, deve ser aplicado o quanto disposto na Lei de Concentração de Atos na Matrícula.

Fica claro, assim, que o registro da penhora é, em regra, condição/requisito para ao reconhecimento configuração de fraude à execução. Sendo a boa-fé (exceto nos casos expressamente previstos em lei, conforme exposto acima) princípio base e, portanto, premissa, não havendo o registro da penhora, cabe à parte interessada comprovar que o terceiro adquirente tinha conhecimento da situação de débito deflagrada no processo.

Muito bem. Ao final de fevereiro/2025, a Corte Superior disponibilizou acórdão (Embargos de Divergência em REsp nº. 1896456/SP), por meio do qual a Segunda Seção³ julgou recurso que discutiu o desalinhamento de entendimentos da Terceira e Quarta Turmas quanto à possiblidade do reconhecimento de fraude na doação de imóvel de ascendente para descendente na ausência de registro prévio da penhora.  A questão foi assim resumida: 

“Há duas questões centrais em discussão: (i) se, para o reconhecimento de fraude à execução, é indispensável o registro da penhora na matrícula do imóvel, conforme a Súmula n. 375 do STJ; (ii) se a doação de imóvel realizada por devedor em contexto de blindagem patrimonial entre ascendentes e descendentes pode ensejar a caracterização de má-fé, dispensando o registro da penhora.”  

Eis que alcançada a seguinte tese: 

Tese de julgamento: O registro da penhora na matrícula do imóvel é dispensável para o reconhecimento de fraude à execução em hipóteses de doação entre ascendentes e descendentes que configure blindagem patrimonial em detrimento de credores. A caracterização de má-fé em doações familiares pode decorrer do vínculo familiar e do contexto fático que demonstre a intenção de frustrar a execução.

Viu-se que, no caso, enquanto a Terceira Turma mantinha firme o entendimento de ser necessário o registro prévio da penhora para a configuração de fraude, presumindo a boa-fé ainda que diante de doação de ascendente para descendente, a Quarta Turma dispensou o registro ao reconhecer a má-fé, oriunda da doação com o intuito de blindagem patrimonial em detrimento de credores, considerando o contexto fático da insolvência.  

Nas razões de decidir, o relator, Min. João Otávio de Noronha, destacou a relativização do entendimento contido na Súmula 375 em casos de blindagem patrimonial familiar, mormente quando o vínculo entre o devedor e o adquirente (em especial, familiares) evidencia má-fé. E apontou: 

“Entretanto, em casos de transmissão no âmbito familiar, especialmente  quando o bem permanece no núcleo familiar e há indícios claros de blindagem patrimonial, como doações entre ascendentes e descendentes inclusive com  reserva de usufruto (exatamente o caso em tela), a jurisprudência tende a relativizar  a aplicação da súmula porque se considera que o vínculo familiar permite a caracterização de má-fé do donatário, dispensando a lógica do registro da penhora  e afastando a necessidade de comprovar o desconhecimento do adquirente.”

No caso concreto, a doação, gratuita, e com reserva de usufruto, foi feita pela sócia executada para os filhos, num contexto de dissolução irregular da empresa, após decisão que determinou a desconsideração da personalidade jurídica da empresa familiar. Daí entendeu-se pela excepcionalidade da situação, a culminar no reconhecimento de fraude à execução mesmo sem o prévio registro da penhora.  

Embora num primeiro momento a tese de julgamento pudesse soar quase como um esvaziamento do instituto da doação, o fato é que as circunstâncias fáticas do caso apontaram, pelo que se viu, a uma situação de má-fé: a executada já tinha conhecimento da iminência de sua inclusão na execução (desconsideração da personalidade jurídica); doou o bem (aos filhos), mas permaneceu na sua posse (reserva de usufruto). O imóvel segue no seio familiar, assim como o era empresa executada; a doação, assim, neste contexto específico, de prévio conhecimento da situação de insolvência, da iminência de alcance do bem e a manutenção da posse e integração familiar do imóvel permitem cogitar que a doação não era de fato intencionada não fosse a execução em andamento. 

Interessante que logo antes, no início de fevereiro de 2025, o STJ julgou possível o reconhecimento da manutenção da proteção do bem de família que, apesar de ter sido doado em fraude à execução aos seus filhos, ainda é utilizado pela família como moradia (processo em segredo de justiça, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 6/2/2025, DJEN 13/2/2025.

Na ocasião, a Segunda Seção do STJ entendeu que o reconhecimento da ocorrência de fraude à execução e sua influência na disciplina do bem de família deve ser aferida casuisticamente, de modo a evitar a perpetração de injustiças – deixando famílias ao desabrigo – ou a chancelar a conduta ardilosa do executado em desfavor do legítimo direito do credor, observados os parâmetros do art. 792 do Código de Processo Civil e da Lei n. 8.009/1990.

De acordo com o entendimento, “o parâmetro crucial para discernir se há ou não fraude contra credores ou à execução é verificar a ocorrência de alteração na destinação primitiva do imóvel – qual seja, a morada da família – ou de desvio do proveito econômico da alienação (se existente) em prejuízo do credor. Inexistentes tais requisitos, não há alienação fraudulenta” (REsp 1.227.366/RS, Quarta Turma, DJe 17/11/2014). Por conseguinte, se não houve alteração, não há interesse na declaração de fraude e ineficácia da alienação em relação ao exequente, diante da ausência de consequência sobre o imóvel que continuaria sendo bem de família e, portanto, impenhorável.

Nesse sentido, ao fim e ao cabo, a ratio inicial, preconizada pela Súmula 375, não se alterou, já que, afinal estar-se-ia diante de situação de má-fé, que trata, justamente, de hipótese de dispensa de registro prévio da penhora. Pode-se até dizer, inclusive, que o julgamento não se debruçou, propriamente, sobre o registro ou não da penhora, mas sim quanto às circunstâncias que apontam à configuração da má-fé, que, se presente, traz à tona exceção à regra.   

Contudo, decisões que tendem a recorrer-se ao mérito e subjetivismo (intentado ou pressuposto) pode criar o esvaziamento senão do instituto da doação, como bem da própria Lei de Concentração de Atos na Matrícula, abrindo espaço para discussões deveras teratológicas, que pode representar uma possível nova onda de caça às bruxas, que fatalmente gerará insegurança jurídica às operações tradicionais e de boa-fé.

Nossas equipes de Contencioso e Consultivo Imobiliário estão à disposição para esclarecer pontos sobre o tema acima.