A inconstitucional cobrança do ICMS-DIFAL nos Estados


A inconstitucional cobrança do ICMS-DIFAL nos Estados


Por Júlia Maurizi Mendonça Passos e Júlia de Oliveira Fonseca

No intuito de corrigir as distorções econômicas no recolhimento do ICMS pelos Estados do país nas operações interestaduais (i) de compra e venda de mercadorias e (ii) dos serviços sujeitos a esse imposto, a Emenda Constitucional nº 87/2015, popularmente conhecida como “emenda do e-commerce”, alterou o artigo 155, incisos VII e VII, da Constituição para prever a exigência do diferencial de alíquotas (“DIFAL”) também nas operações interestaduais envolvendo consumidores finais não contribuintes do ICMS[1], pois, até então, só era prevista a incidência do DIFAL nas operações para destinatários contribuintes.

Todavia, no julgamento do RE nº 1.287.019 e da ADI nº 5.469 (Tema 1093 de Repercussão Geral), ocorrido em fevereiro/2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS introduzido pela referida emenda constitucional, ante a ausência de prévia edição de lei complementar para disciplinar sua exigência[2].

Trocando em miúdos, o STF declarou a inconstitucionalidade formal do ICMS-DIFAL exigido pelos entes federativos em momento anterior ao advento da legislação complementar, já que a incidência e a cobrança do DIFAL realizada pelos Estados nas operações interestaduais só poderia ocorrer, validamente, após o advento de lei complementar específica a ser editada pela União, em cumprimento à regra prevista no artigo 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição[3].

Embora o precedente faça expressa referência às operações de saída de mercadorias destinadas a não contribuintes do ICMS, é certo que o mesmo raciocínio jurídico se aplica integralmente às hipóteses de cobrança do DIFAL na aquisição de mercadorias por contribuintes do imposto estadual. Afinal, do mesmo modo que inexistiam normas gerais estabelecidas por lei complementar para as operações destinadas a não contribuintes do ICMS, tampouco havia legislação complementar disciplinando a cobrança do DIFAL para as operações interestaduais praticadas por contribuintes do imposto.

Para dar conformidade legislativa ao entendimento firmado pela Suprema Corte e no intuito de editar norma válida, sob a crença de que, ainda em 2021, seria publicada a lei complementar para, enfim, regulamentar o DIFAL, o Estado de Minas Gerais “queimou largada” e editou, em 30 de dezembro de 2021, o Decreto nº 48.343[4], estabelecendo alterações no Regulamento do ICMS para as operações interestaduais tomadas por consumidores finais contribuintes e não contribuintes do imposto.

Ocorre que somente em 04/01/2022 foi editada a Lei Complementar nº 190, para regulamentar as operações e prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado da federação. Até o advento da referida lei, o ICMS-DIFAL não possuía seus parâmetros gerais regulamentados por legislação complementar, razão pela qual não poderia ser objeto de cobrança pelos Estados da Federação, conforme reconhecimento pelo próprio STF.

É válido lembrar que, mesmo diante da inexistência de lei complementar disciplinando a cobrança do ICMS-DIFAL à época, o Estado de Minas Gerais já previa, desde 2002, a exigência do diferencial de alíquotas na aquisição interestadual de mercadorias destinadas a uso, consumo ou ativo permanente por contribuinte do Imposto[5].

O histórico legislativo do Estado de Minas Gerais não deixa dúvidas de que todas as disposições normativas que impuseram a cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS – seja nas operações praticadas por consumidor final contribuinte ou não do imposto - foram implementadas sem a prévia edição de lei complementar de caráter nacional, imprescindível para que a exigência do tributo fosse legitimamente realizada.

Até janeiro/2022 as balizas necessárias à cobrança do DIFAL pelo fisco mineiro ainda não haviam sido estabelecidas mediante lei complementar, sendo igualmente inexistente a edição de qualquer norma estadual posterior ao advento da Lei Complementar nº 190/2022.

Assim, a legislação instituída pelo Estado de Minas Gerais em momento anterior à publicação da Lei Complementar nº 190/2022 não pode ser considerada válida, ante a inexistência, no ordenamento jurídico brasileiro, do fenômeno da constitucionalidade superveniente. 

Em que pese tais considerações, a Superintendência de Tributação da Secretaria de Fazenda do Estado de Minas Gerais editou, em 08/02/2022, o Comunicado SUTRI nº 01, estabelecendo que o ICMS devido nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto será exigido a partir de 5 de abril de 2022 e, com relação às operações envolvendo destinatário contribuinte, Minas Gerais permanece cobrando o DIFAL mesmo após o julgamento do Tema 1093 pelo Supremo. Nada mais absurdo. 

Ainda, após a promulgação da referida lei complementar, a cobrança do DIFAL deve observar aos princípios da anterioridade nonagesimal e da anterioridade anual previstos no artigo 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal[6], os quais diferem a produção de efeitos para o ano seguinte (no caso, 2023).

Além disso, não se pode perder de vista que o Estado de Minas Gerais (assim como diversos outros Estados da Federação) não editou nova legislação para a cobrança do DIFAL após a promulgação da Lei Complementar nº 190/2022, fato que, por si só, já torna indevida qualquer cobrança que venha a ser efetuada pelo fisco mineiro. 

Conforme preceituam os artigos 146, inciso III, e 155, § 2º, inciso XII, ambos da Constituição Federal, o papel da lei complementar de normas gerais em matéria de ICMS é de estabelecer condição de validade, e não de simples eficácia, das normas jurídicas que o disciplinam, pelo que não se pode reduzir a superveniência da Lei Complementar nº 190/2022 à mera condição de eficácia jurídica da legislação estadual mineira que instituiu a cobrança do ICMS-DIFAL.

Embora a postergação da cobrança do ICMS-DIFAL para o ano de 2023 não tenha sido acolhida em diversas ações movidas com esse propósito[7], a propositura de medida judicial visando afastar a cobrança do imposto e a restituição dos valores indevidamente recolhidos ao Estado de Minas Gerais no período anterior à promulgação da Lei Complementar nº 190/2022 - especialmente nas hipóteses de aquisição de bens por contribuintes do imposto, situação não enfrentada pelo precedente da Suprema Corte - possui chances consideráveis de êxito no Poder Judiciário.

Afinal, a inexistência de lei federal que estipule as regras gerais para a instituição e cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS até o advento da Lei Complementar nº 190/2022 nos leva à inarredável conclusão de que a legislação mineira (assim como outras normas de diversos Estados da Federação) incorre em afronta direta à Constituição Federal, pela ausência de respaldo em lei complementar que a valide.

[1] Art. 1º Os incisos VII e VIII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal passam a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 155....................................................................................

§ 2º............................................................................................

VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;

a) (revogada);

b) (revogada);

VIII - a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída:

a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;

b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto;

[2] Tese firmada: A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais.

[3] Art. 146. Cabe à lei complementar:

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;


[5] Redação do art. 43, XII, do RICMS/MG, vigente entre 15/12/2002 e 31/12/2015: 
“Art. 43. Ressalvado o disposto no artigo seguinte e em outras hipóteses previstas neste Regulamento e no Anexo IV, a base de cálculo do imposto é:
“XII - na entrada, no estabelecimento de contribuinte, em decorrência de operação interestadual, de mercadoria destinada a uso, consumo ou ativo permanente do adquirente, a base de cálculo sobre a qual foi cobrado o imposto na origem; – Disponível em: http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/ricms/partegeral2002.pdf.

[6] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; 
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

[7] “Empresas perdem 70 liminares contra o ICMS-Difal” – Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/03/08/empresas-perdem-70-liminares-contra-o-icms-difal.ghtml