CADE decide que zero rating não afeta a livre concorrência


CADE decide que zero rating não afeta a livre concorrência


O Conselho Administrativo de Defesa da Econômica – CADE arquivou o Inquérito Administrativo oriundo da denúncia do Ministério Público Federal (MPF)1 quanto às práticas das operadoras de telefonia móvel (Claro, Tim, Oi, Vivo) nos planos comercializados com zero rating.

O zero rating é uma prática comercial na qual os provedores de serviço de telecomunicações oferecem aos usuários acesso a determinados aplicativos sem abatimento da franquia de dados contratada. Apesar de, aparentemente, ser benéfica ao usuário, certas práticas de zero rating trazem questões complexas relacionadas à neutralidade de rede e à livre concorrência, já que os dados de conexão do usuário não são tratados de forma isonômica.

Segundo Tim Wu2, professor da Columbia Law School e criador do conceito de neutralidade de rede, a neutralidade de rede é um dos princípios basilares da internet; é a ideia de que o melhor aproveitamento possível de web acontece quando o tratamento dos dados é feito de maneira equânime, sem nenhum tipo de discriminação, uma vez que a internet desde a sua concepção foi prevista descentralizada e neutra.

De acordo com a Carta da ONU de Direitos Humanos e Princípios para a Internet3, o direito de acessar a internet inclui a neutralidade e igualdade de rede. Seu formato deve ser protegido e promovido para ser um veículo livre, aberto, igualitário e não discriminatório de troca de informação, comunicação e cultura. Não deve haver privilégios especiais ou obstáculos para qualquer grupo ou conteúdo por motivos econômicos, sociais, culturais ou políticos.

O artigo 3º, inciso IV, Marco Civil da Internet contemplou a preservação e garantia da neutralidade de rede como um dos princípios da internet. O artigo 9º previu que o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

As hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados na internet e de degradação de tráfego foram tratadas pelo Decreto 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet. O artigo 9º do Decreto vedou acordos ou condutas unilaterais entre o responsável pela conexão e os provedores de aplicação que:

Icomprometam o caráter público e irrestrito do acesso à internet e os fundamentos, os princípios e os objetivos do uso da internet no País;
IIpriorizem pacotes de dados em razão de arranjos comerciais; ou
IIIprivilegiem aplicações ofertadas pelo próprio responsável pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento ou por empresas integrantes de seu grupo econômico.

De acordo com o MPF, as práticas de zero rating pelas operadoras denunciadas afetam diversos dispositivos do artigo 36 da Lei 12.529/2011, podendo limitar, falsear e prejudicar a livre concorrência e a livre iniciativa, por meio da discriminação de condições de acesso a aplicativos na Internet e fixação diferenciada de preços:

ILimitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
IIILimitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
VIIUtilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;
VIIIRegular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços;
XDiscriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços;
XVVender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo.

A denúncia do MPF sustenta que as operadoras denunciadas controlam quase a totalidade do mercado e favorecer o acesso a determinados aplicativos por meio de cobrança reduzida, isenção total ou acesso patrocinado, distorce a concorrência no mercado, gera obstáculos para novas empresas e desestimula a inovação e novos investimentos.

Conforme o MPF, sob o pretexto de oferecer algo gratuito, essas condições violam a autodeterminação do usuário que perde a isonomia de acesso a aplicações na web e torna oneroso o acesso neutro a internet, tornando-a seletiva e economicamente segmentada, o que viola o princípio da neutralidade de rede contemplada pelo Marco Civil da Internet.

Em sua manifestação, a Anatel destacou que a estratégia de zero rating comporta diversos modelos de negócio, dentre eles:

• Tarifação zero por escolha da própria prestadora: a prestadora de serviço de telecomunicações elege, segundo critérios pautados em uma decisão interna, certos conteúdos ou aplicações que, quando acessados pelo usuário, não gerarão qualquer tipo de custo;
• Tarifação zero para aplicações ou serviços de emergência: o acesso a aplicações ou serviços de utilidade pública específicos não são cobrados do usuário;
• Dados patrocinados: nesse caso, o patrocinador arca com os custos dos dados trafegados pelo usuário final quando destinarem-se ao acesso a website específico ou utilização de determinado aplicativo;
• Gerenciamento de dados: consiste no gerenciamento de tráfego direcionado a provedores de conteúdo, a fim de que estes se utilizem de períodos de menor demanda de tráfego, os quais são consequentemente mais baratos, para entrega de seu conteúdo de forma mais eficiente;
• Dados como recompensa: ocorre quando uma marca, desejando engajar determinado consumidor, lhe oferece a possibilidade de acesso a dados móveis, com custo zero, como recompensa por assistir um vídeo específico, baixar certo aplicativo ou realizar determinada ação desejada;
• Publicidade direcionada: nesse caso, direciona-se a publicidade de determinado produto àqueles consumidores que, segundo informações de seu acesso, efetivamente têm interesse. Nesse caso, o usuário que baixar o aplicativo ou acessar o conteúdo desejado não pagará por tê-lo feito;
• Dados corporativos: permite que determinada instituição arque apenas com acesso a dados corporativos. Os dados pessoais serão custeados pelo próprio funcionário.

A Anatel afirmou que a os planos de serviço comercializados com zero rating não infringem, a princípio, a neutralidade de rede e não configuram ameaça à livre concorrência. Na visão da Agência, tais práticas geram ganhos de eficiência e não limitam a capacidade de inovação do mercado de provimento de conteúdo e, dessa forma, não haveria indícios suficientes para ensejar a abertura de um processo administrativo por parte do CADE.

Na visão das operadoras (Claro, Tim, Oi, Vivo), além do zero rating estar em total conformidade com as regras de neutralidade de rede previstas no Marco Civil da Internet, as questões levantadas sobre as violações à neutralidade de rede não poderiam fazer parte do escopo do inquérito, por estarem fora da competência do CADE.

No mais, as operadoras alegam que o zero rating tem o potencial de trazer benefícios ao consumidor, aumentar a competitividade do mercado, e incentivar a inovação. Isso porque, não existe acordo de exclusividade entre as empresas, sendo que qualquer outra companhia pode ser objeto de políticas similares. Consequentemente, não haveria nenhum impacto anticompetitivo.

Organizações não governamentais, como PROTESTE (entidade de defesa do consumidor) e ABRANET (Associação Brasileira de Internet), se expressaram favoráveis à abertura de processo administrativo, alegando que as práticas de zero rating violam a neutralidade de rede, uma vez que quando o limite de dados é atingido, o acesso às aplicações que fazem parte do zero rating continua sendo possível, e todas as outras são bloqueadas ou suprimidas. Para essas entidades, as práticas infringem tanto o Marco Civil da Internet quanto a Lei de Defesa da Concorrência, constituindo uma barreira para a inovação e entrada de novas empresas no mercado de aplicativos.

O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), na sua manifestação, observou que o debate sobre zero rating é complexo, mas que o Marco Civil da Internet não veda expressamente os acordos e a questão deve ser abordada exclusivamente pela Anatel. Quanto às questões concorrências, o MCTIC considerou a denúncia do MPF abstrata, sem dados concretos que corroborem os argumentos trazidos. Alegou que o mercado de aplicativos é diversificado, com alta taxa de inovação e competição em escala global, e assim, não existiriam elementos suficientes para caracterizar o zero rating como conduta anticoncorrencial.

Ante o exposto, a Superintendência Geral (SG) do CADE, entendeu a priori que analisar as denúncias sobre as violações do princípio da neutralidade de rede extrapolariam a competência do Conselho, que deve analisar as práticas sob a ótica da Lei de Defesa da Concorrência. E, tendo em vista que a Anatel e o MCTIC sustentaram que os acordos de zero rating não violam o Marco Civil da Internet, as condutas foram descaracterizadas.

Em relação aos aspectos concorrenciais, a SG entendeu que não existem indícios de que as práticas denunciadas pelo MPF trazem prejuízos à concorrência do setor, uma vez que (i) não existe qualquer relação societária entre as operadoras e o os aplicativos oferecidos sem consumo dos dados; (ii) a oferta de gratuidade no acesso a esses aplicativos pouparia a franquia de dados, fomentando o acesso a outras aplicações; (iii) não existem relações contratuais de exclusividade. Além disso, a SG considerou que o a proibição do zero rating viabilizaria o acesso a aplicativos e sites governamentais e educacionais sem ônus para o usuário.

Diante disso, a SG decidiu pelo arquivamento do inquérito administrativo, mas ressaltou que, havendo novos indícios de infração à ordem econômica, o inquérito pode ser reaberto.

Após esse desfecho, a PROTESTE recorreu da decisão, contestando diversos pontos da decisão e alegando que o CADE deveria ouvir o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) ao invés de consultar apenas o MCTIC e a ANATEL para fundamentar sua decisão. Citou ainda que, de acordo com pesquisa do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), os acessos aos planos pré-pagos com acordos de zero rating é mais predominante nas classes B, C e D/E, e, como não existem outras ofertas de zero rating além do Facebook e WhatsApp, a afirmação de que não há prejuízo para a concorrência se mostra frágil e sem respaldo.

Vale ressaltar que não existe unanimidade entre os reguladores ao redor do mundo sobre a neutralidade de rede e os acordos de zero rating. Devido ao ritmo das inovações tecnológicas e a dinâmica de mercado, os modelos de negócios ainda estão sendo testados e não é possível chegar a uma conclusão definitiva sobre os efeitos negativos e anticoncorrenciais dos acordos de zero rating.

1 – Nota Técnica nº 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE. Disponível neste link Acesso em 03/10/2017
2 – WU, Tim. Network Neutrality. Disponível neste link Acesso em 04/10/2017
3 – Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet, p. 15. Disponível neste link Acesso em 04/10/2017

*Contribuiu com a elaboração Vitor Koketu da Cunha, interno Azevedo Sette Advogados