Racismo estrutural e os desafios no ambiente corporativo


Racismo estrutural e os desafios no ambiente corporativo


Coautoria da estagiária Kamilla Ranny Macedo Niz*

Em 2019 uma campanha de marketing da rede de lojas Etna, do ramo de decoração de interiores, viralizou nas redes sociais ao retirar de seu catálogo o termo “criado-mudo”. A ação problematizou a raiz histórica por trás do uso deste termo, em busca de conscientização. 

Na campanha a empresa explica o motivo pelo qual a utilização do termo possui cunho racista, uma vez que tal expressão faz referência ao período da escravidão no Brasil, em especial aos serviços dos escravos domésticos - também chamados de criados - que passavam dia e noite imóveis, ao lado da cama, para atender aos seus “senhores”, como meros objetos. Daí, surgiu o termo o criado-mudo.

Em texto publicado na página do site da loja, criada especialmente para divulgação da ação, a empresa expõe a origem do termo: "Um dia, surgiu a ideia de uma pequena mesinha para ficar ao lado da cama, usada basicamente para apoiar objetos. Esse móvel exercia a mesma função do escravo doméstico e foi chamado de criado. Então, para não confundir os dois, passaram a chamar o móvel de criado-mudo. Dois séculos depois, sem nos dar conta, ainda carregamos termos racistas como esse, mas sabemos que é sempre tempo de mudar e evoluir"1

Mas afinal, por que termos como aquele são ainda corriqueiros em nossa sociedade, século após a abolição da escravatura? Apesar dos avanços sociais, políticos e jurídicos quanto aos direitos igualitários, a escravidão deixou sequelas enraizadas na cultura brasileira, a notar por termos de cunho racista que ainda se fazem presentes no nosso linguajar, o que vem demandando das organizações um cuidado especial em sua forma de se comunicar. 

O Professor Silvio Almeida em seu livro “O que é racismo estrutural?”2, discorre que o racismo vai muito além de um conceito formal, pois ele atua de forma estruturada nas relações sociais, por isso é de suma importância a compreensão de fatos históricos, sociais, políticos, jurídicos e econômicos para compreendê-lo de fato.

O autor aborda que o racismo é decorrência da própria estrutura social, do modo “normal” com que se constituíram as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, sendo parte de um processo social. O uso do termo estrutural significa que o racismo está entranhado na forma como a sociedade se constituiu, o que não significa uma condição incontornável, sendo certo que os campos nos quais o racismo está integrado necessitam de constante discussão e esclarecimento a fim de ser combatido por completo. Nesse sentido, “a estrutura é viabilizadora, não apenas restritora, o que torna possível que as ações de vários indivíduos transformem estruturas sociais”. 

No ambiente corporativo, o racismo estrutural não é exceção. Isto porque as terminologias seguem pronunciadas inconscientemente, em reuniões de trabalho, catálogos, anúncios e outros veículos de comunicação. 

Assim como o “criado-mudo”, “humor negro”, “inveja branca”, “lista negra”, “denegrir”, “samba do crioulo doido”, dentre outras, são palavras e expressões que por possuírem cunho racista em decorrência de sua origem, precisam ser definitivamente abolidos do mundo corporativo. Sabendo-se de toda a riqueza da língua portuguesa a substituição de termos como os acima citados, além de possível e urgente, contribui para o combate ao racismo: “‘Denegrir’ pode ser substituído por ‘ofender’. ‘Dia de branco’ por ‘dia útil’. Conscientização que impactará não apenas a linguagem, mas também o cotidiano”3, ressaltou a pesquisadora em relações raciais, Kelly Quirino.

O racismo estrutural não se restringe à terminologia inadequada, visto que engloba as atitudes racistas, responsáveis por reproduzir essa discriminação histórica. Nesse sentido, a advogada Maria Sylvia, também ativista de Direitos Humanos e Presidente do Geledés, em entrevista ao Instituto Votorantim ressaltou que “o racismo se manifesta no ambiente corporativo já na porta de entrada para os futuros colaboradores das empresas: os RHs (departamento de Recursos Humanos), algumas vezes, por determinação de superiores, não contratam colaboradores negros e negras. Caso a empresa contrate, o racismo se fará presente nas baixas remunerações [...] entendemos que são muitas as faces de manifestação do racismo institucional”4.

É essencial disseminar a importância das práticas de conscientização, especialmente no ambiente corporativo, a fim de combater a discriminação advinda do racismo estrutural. Para tal finalidade, os programas de conscientização, diversidade e inclusão possuem papel primordial. 

Desta feita, cabe destacar a preocupação crescente de investidores para que as empresas adotem práticas de ESG (termo em inglês Environmental, Social and Governance) que atuam como métrica para nortear boas práticas de negócios, vez que no atual mercado, políticas tradicionalmente associadas à sustentabilidade ambiental e social passaram a fazer parte da estratégia financeira das empresas.

Nesta senda, certamente o combate ao racismo estrutural está intimamente ligado às práticas sociais e de governança corporativa, contribuindo para que as organizações estejam mais preparadas para os desafios futuros, com solidez em longo prazo. 

Assim, estabelecer um processo de governança em todos os níveis da empresa, a começar pelos conselhos de administração, com a criação de comitês e processos internos voltados para a equidade racial, bem como para a diversidade, mostra-se mais do que necessário. 

Práticas como assessoria de imprensa inclusiva, treinamento e ações de recrutamento igualitários, assim como reflexões internas e nas redes sociais da empresa sobre o tema são atos que não só contribuem para aumento da receita, redução dos custos, minimização dos problemas legais, aumento da produtividade e otimização de investimentos, mas também para a evolução cultural no combate ao racismo estrutural. Que continuemos a caminhar nesse sentido!  

REFERÊNCIAS:

1 Criado mudo nunca mais. Etna, 2019. Disponível em https://www.etna.com.br/criadomudonuncamais. Acesso em: 27 de fev. 2021. 

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte, MG: Letramento, 2018, p. 38,39 e 40.

VALLE, Leonardo. Substituir expressões cotidianas que usam a cor preta de forma pejorativa ajuda a combater o racismo. Instituto Claro, 2020. Disponível em: https://www.institutoclaro.org.br/cidadania/nossas-novidades/reportagens/substituir-expressoes-cotidianas-que-usam-a-cor-preta-de-forma-pejorativa-ajuda-a-combater-racismo/. Acesso em: 08 mar. 2021. 

Racismo corporativo: como mudar?, 2018. Disponível em:  http://www.institutovotorantim.org.br/racismo-corporativo-como-mudar/. Acesso em: 02 mar. 2021.