O impacto da Covid-19 (Coronavírus) nas relações de consumo brasileiras


O impacto da Covid-19 (Coronavírus) nas relações de consumo brasileiras


No fim do ano de 2019, começaram a chegar notícias no Brasil de um surto de infecções e problemas respiratórios na população chinesa, causados por um novo tipo de coronavírus, o 2019-nCov. A par disso, no dia 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta para a COVID-19. Numa rápida escalada, vários países começaram a sofrer os efeitos deletérios do novo coronavírus e aquilo que, em dezembro/19, nos parecia distante é hoje, talvez, a causa da maior crise sanitária e econômica, respetivamente, a ser enfrentada pelo Brasil. E este colapso possui diversos vieses e desdobramentos, que vão desde uma grande tensão política até a saúde da nossa população. 

Uma das medidas adotadas por diversos países para conter o surto da doença é o distanciamento social. Com isso, milhares de pessoas estão laborando em suas casas, em regime home office, ou, simplesmente, suspenderam suas atividades. Tivemos, pois, uma abrupta desaceleração da economia, diminuição agressiva na circulação de riquezas e prestação de serviços. No Brasil, formalmente, e de acordo com os mais diversos decretos editados pela União, Estados e Municípios, apenas as atividades consideradas essenciais se mantém.  

Foi, então, que, repentinamente, as relações comerciais foram diretamente afetadas, trazendo para o Poder Público e a iniciativa privada uma série de dúvidas, incertezas e a necessidade de agir rapidamente, visando evitar o imediato colapso econômico e a falência de milhares de empresas. 

Neste contexto, várias medidas vem sendo tomadas pelos nossos governantes visando adequar a arrecadação, equalizar os interesses entre empregados e empregadores e regular relações jurídicas de direito privado no período da quarentena, trazendo, entre outros, parâmetros e regras para regimes jurídicos, revisão e extinção contratual, a não incidência, neste período, da prescrição e decadência, alterações nas regras consumeristas, nas locações, etc.

Umas dessas medidas, foi a elaboração do Projeto de Lei n.º lei 1.179, de 2020, de autoria do também advogado e senador mineiro Antônio Anastasia, que dispõe sobre o “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). 

O Projeto de Lei (PL) contou com a participação de renomados juristas, com a contribuição da classe política e encontra-se, até a presente data, em tramitação legislativa (aprovado no Senado e aguardando tramitação na Câmara do Deputados e posterior sancionamento ou veto do Presidente Jair Bolsonaro). 

O “PL” regula situações transitórias para as relações jurídicas de direito privado, estabelecendo regras que objetivam, além da preservação das relações jurídicas e proteção dos vulneráveis em decorrência dos impactos trazidos pela pandemia, a desjudicialização, com o consequente proferimento de múltiplas decisões pelo Tribunais nacionais sobre os mesmos temas, em prol da segurança jurídica e previsibilidade. 

Paralelamente a isso, o Brasil, se comparado a outros países, tem uma das mais efetivas, claras e exigentes normas de direito do consumidor do mundo. Essa, portanto, nem sempre foi a nossa realidade. Fazendo um breve esforço histórico, o dinamismo das contratações e a evolução da prestação do serviço acabaram por criar uma situação desigual na relação contratual estabelecida entre fornecedores e consumidores finais, colocando o consumidor em posição extremamente frágil, o que, com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e a inclusão da defesa do consumidor como direito e garantia fundamental do cidadão, precisou ser corrigida. 

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) foi inserido no nosso ordenamento jurídico como uma resposta legal protetiva que vai além da função fiscalizadora e punitiva e visa, essencialmente, equilibrar as relações estabelecidas entre fornecedores e consumidores e proteger a parte mais vulnerável, o consumidor. 

Umas destas regras de proteção é aquela estabelecida no art. 49 do CDC, chamada de “prazo de arrependimento” ou “prazo de reflexão” que dispõe que: “O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”. Ou seja, se o negócio foi realizado de maneira remota, o consumidor, no prazo de até 7 dias da compra ou assinatura, e sem maiores justificativas ou penalidade, pode desistir do negócio e devolver o produto.

Vale lembrar aqui das mais variadas formas de aquisição fora do domicílio comercial, como as compras realizadas pela internet, telefone, aplicativos, plataformas e a popularização do e-commerce.

Voltando ao PL, a proposta de redação estabelecia em seu art. 8º, que, até o dia 30 de outubro, ficaria “suspensa a aplicação do art.  49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de produto ou serviço adquirido por entrega domiciliar (delivery)".

Todavia, o art. 8 do Projeto de Lei em questão sofreu importantes alterações, como a especificação de quais produtos e serviços seriam afetados pela não possibilidade do exercício do direito de arrependimento por parte do consumidor. Assim, persistindo a alteração proposta pelo Senado Federal no Projeto de Lei, as únicas hipóteses em que o consumidor não poderá exercer o seu direito de arrependimento será nos casos de delivery de produtos perecíveis/consumo imediato e medicamentos. Vale dizer: a aquisição de bens não perecíveis, incluindo grande parcela do varejo online, veículos, passagens aéreas, entre outros, não será afetada pela potencial aprovação do PL, mantendo intacto, portanto, o direito de arrependimento na maior parte das relações sob a égide do Código de Defesa do Consumidor.

Como se vê, há preocupação do Poder Público em relação a disposições do Código de Defesa do Consumidor durante a situação do COVID-19, em especial ao prazo de arrependimento do art. 49/CDC. Entretanto, diversos prazos decorrentes de situações previstas na lei consumerista e sua aplicação durante a pandemia não foram abarcados pelo referido Projeto de Lei, como, por exemplo, os prazos de correção de vício no produto inciso I, do art. 18/CDC) e de validade do valor orçado (§1º, do art. 40/CDC).

Nos parece, portanto, que o momento, alarmante e grave, de extrema dificuldade para o cumprimento de obrigações, desde as mais simplórias até as mais complexas, reclamam solidariedade das partes, ponderação, cooperação, conciliação, razoabilidade e boa-fé para resolução dos conflitos, inclusive naqueles que são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, com o repúdio a atitudes oportunistas por ambos os lados, sendo certo que o advogado e o Poder Judiciário terão papel fundamental na equação necessária para equilibrar essas relações e interesses. 

O escritório continuará a acompanhar os desdobramentos das medidas relacionadas à pandemia e nossa área de contencioso cível está à disposição para qualquer esclarecimento adicional que se faça necessário.