Dois blocos, duas décadas, um acordo e... vinhos!


Dois blocos, duas décadas, um acordo e... vinhos!


Coautoria da paralegal Ana Clara Appolinario*

Mercosul e União Europeia passaram duas décadas negociando um Acordo de Livre Comércio abrangendo diversos setores, cobrindo, no pilar comercial, desde temas mais ligados a bens (comércio de bens, regras de origem, barreiras técnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias, defesa comercial) até assuntos como comércio de serviços, compras governamentais, desenvolvimento sustentável, facilitação de comércio, transparência, dentre outros. O Acordo é considerado o maior e de maior complexidade já negociado pelo Mercosul e formará uma das maiores áreas de livre comércio do mundo1. Além dos grandes temas, o Acordo contém alguns anexos com compromissos em setores específicos, dentre os quais se encontra o Anexo sobre Comércio de Vinhos e Bebidas Alcóolicas. 

Não é novidade que países europeus não só têm um apreço e ligação cultural e, de certa forma, cotidiana com vinhos, mas também são conhecidos pelo interesse em proteger propriedade intelectual, manter padrões de segurança elevados, respeito a métodos tradicionais de produção de vinhos, tendência crescente também no Brasil. É inegável, ainda, o aumentado interesse, no hemisfério sul, não só pelo consumo, mas também pela cultura do vinho, de certa forma influenciada pela presença europeia, ainda mais presente no recorte territorial dos países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). 

Com base no interesse reforçado, ao longo das duas últimas décadas, por relações comerciais mais abertas, objetivas, transparentes e cooperativas, Velho Mundo e Novo Mundo2 acabaram selando, através do Acordo Mercosul-União Europeia, um conjunto de regras específicas sobre regulamentação do comércio de vinhos entre os dois blocos.

A Europa e a América do Sul representam uma parte considerável do mercado de vinhos na dinâmica do comércio internacional, valendo destacar que a importação de vinhos cresceu fortemente no Brasil em 2020, especialmente a partir do período que coincide com o início de medidas de isolamento social no Brasil (março de 2020) em decorrência da pandemia da COVID-19, conforme ilustra o gráfico a seguir3



Seja para comemorar por estarem vivos, seja para buscar alguma forma de consolo e um mínimo de satisfação no meio da crise instalada no Brasil (e no mundo) desde o início da pandemia, talvez inspirados na famosa frase atribuída a Napoleão Bonaparte – “Eu não posso viver sem champagne; nas vitórias é merecido, nas derrotas é necessário” –, fato é que, mesmo com a crescente desvalorização cambial, a demanda dos brasileiros manteve o comércio internacional de vinhos aquecido. Dentre as principais origens das importações brasileiras estão tradicionais países produtores europeus: Portugal, Itália, Espanha e França, sendo que, em 2020, Espanha Itália e França foram os maiores exportadores mundiais de vinhos em volume. Por outro lado, na América do Sul, as origens mais representativas em volume foram Chile, Argentina e Uruguai5. O Brasil exportou, em 2020, mais de 8 milhões de dólares em vinhos da posição 2204 da NCM6. Esse retrato recente reforça ainda mais a pertinência de um Acordo que pretende melhorar as relações comerciais entre a UE e o Mercosul.

O Anexo sobre vinhos7 do Acordo Mercosul-União Europeia abrange diferentes aspectos relevantes para a comercialização de vinhos, delineando padrões e compromissos em torno de temas que partem de definições e utilização de práticas enológicas definidas em diretrizes internacionais (como a OIV – Organização Internacional do Vinho); passando também por regras de rotulagem; certificação; tratamento nacional; cooperação comercial. Como é de se esperar no momento subsequente ao encerramento de negociações de acordos desse porte, provavelmente deverão ser necessárias adaptações na legislação e nos regulamentos dos países do Mercosul e da União Europeia para permitir conformidade com as regras negociadas pelos blocos. 

Alguns temas negociados incluem utilização de práticas enológicas internacionalmente reconhecidas, mudanças em rotulagem, prazo de adaptação na comercialização, denominações (de variedades de uvas, alusivas ao teor de açúcar, dentre outras) que podem, ou que devem, ou que não podem nem devem ser usadas. Nesse contexto, vale destacar a inclusão de diversas Indicações Geográficas (356 por parte da UE, cobrindo não apenas vinhos, mas também queijos, azeites e vários outros produtos), o que permitirá ao Brasil utilizar também indicações típicas de regiões brasileiras produtoras de vinhos. Alguns nomes estarão sujeitos ainda a um período transitório de adaptação (phase-out) para que após um determinado tempo não possam mais ser utilizados ou possam ser usados apenas em certas condições.

Como consequência natural, será importante acompanhar o desenvolvimento desse tema e dos muitos outros cobertos pelo Acordo, para eventuais adaptações legais e regulatórias no Brasil, nos demais países do Mercosul e nos países da União Europeia. E, nesse contexto do livre comércio pretendido, que a humanidade possa também desfrutar, em um futuro próximo – pelo menos os que assim desejarem –, de bons vinhos em boas companhias, pois, como se diz, “o melhor vinho não é necessariamente o mais caro, mas o que é compartilhado”8.  

1 Atualmente, o Acordo está em fase de revisão jurídica para assinatura formal e posterior processo de internalização. Disponível em: http://siscomex.gov.br/acordos-comerciais/mercosul-uniao-europeia/. Acesso em 30 mar 2021.
2 Aqui, essas expressões são utilizadas meramente no sentido empregado entre apreciadores de vinho.
3 Estatísticas brasileiras de importação, em volume líquido, para a Posição 2204 da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), de fevereiro/2019 a março/2021. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home. Acesso em 15 mar 2021.
4 Tradução livre do original em francês: “Je ne peux vivre sans champagne, en cas de victoire, je le mérite; en cas de défaite, j’en ai besoin”.
5 Fonte: Estatísticas do ITC Trademap, lista de exportadores mundiais para os meses janeiro a dezembro de 2020, para a posição 2204.
6 Estatísticas brasileiras de exportação, em valor (USD FOB), para a Posição 2204 da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), janeiro a dezembro de 2020. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/geral/30962. Acesso em 30 mar 2021.
7 Uma versão em português está disponível em https://www.g