Direito ao Esquecimento, proteção de dados e o Recurso Extraordinário nº 1.010.606


Direito ao Esquecimento, proteção de dados e o Recurso Extraordinário nº 1.010.606


Se o direito ao esquecimento tem despertado complexos debates no Brasil nos últimos anos, essa realidade já era experimentada pelo menos nas últimas décadas pela Europa, ponto de referência quanto às discussões do que lá é conhecido como right to be forgotten. A evolução deste instituto no continente europeu remete inicialmente à Diretiva de Proteção de Dados Pessoais (95/46/CE)1 da União Europeia. Apesar de não versar especificamente sobre o direito ao esquecimento, tal diretiva já previa a possibilidade de que os dados pessoais fossem retificados, apagados ou bloqueados quando incompletos ou inexatos.

Além dos debates teóricos e legislativos em torno do tema, a própria diretiva foi objeto de discussão no Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) em um dos mais célebres casos envolvendo o direito ao esquecimento: o Google Spain v AEPD and Mario Costeja González2. Em linhas gerais, o advogado Mario González buscou, pela via administrativa, a desassociação de seu nome com relação a um inadimplemento que já havia sido quitado. Após anos de discussões, inclusive perante a autoridade espanhola (AEPD) – que determinou a retirada dos dados ao buscador – o caso foi então levado a juízo pela Google Spain e pela Google Inc. Em maio de 2014, o TJUE reconheceu como tratamento de dados pessoais as operações realizadas pela Google e a obrigação do motor de busca em remover os resultados (desindexação), ainda que o tratamento que tenha dado causa à discussão tenha sido realizado pela matriz, em localidade não sujeita à aplicação territorial das instituições judiciárias europeias.

Mais tarde, em setembro de 2019, o TJUE reconheceu a limitação territorial do direito ao esquecimento em ação proposta pela autoridade francesa (CNIL) em face da Google em 2015, requerendo a desindexação de conteúdo a nível global3. O direito à desindexação, isto é, que determinados resultados sejam desassociados da busca realizada sobre o indivíduo, foi limitado ao território dos países membros da União Europeia, desobrigando o buscador a desindexar os resultados em todas as suas versões.

No caso da jurisdição nacional, o Direito ao Esquecimento ganha contornos profundos e com características de ponderação principiológicas. Já no contexto europeu, o Esquecimento está atrelado à desindexação de conteúdo, com decisões abrangendo as diretivas de proteção de dados pessoais, vez que a legislação europeia recepcionou em seu ordenamento a possibilidade de requisição de desindexação pelo titular dos dados, conforme descrito nos casos acima.

Voltando-se à realidade brasileira, o direito ao esquecimento tem sido tema de muita discussão, principalmente com o recente julgamento do Recurso Extraordinário n° 10106064 do Supremo Tribunal Federal (“STF”), que envolveu o caso de violência sofrido por Aída Curi em 1958 e a insurgência de sua família quanto à reconstituição do crime em programa de TV em 2004.

O caso tornou-se paradigma para o Direito ao Esquecimento, no qual o STF ganhou a chance de melhor delinear o Instituto, ponderando os princípios constitucionais e a legislação infraconstitucional, como o Marco Civil da Internet (Lei n° 12. 965/2014 – “MCI”), a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n° 13.709/2018 – “LGPD”) e o Código Civil (Lei n° 10.406/02 – “CC”), bem como os aspectos envolvendo a importância da imprensa para a manutenção da ordem democrática e o temido instituto da censura. Os votos apresentaram algumas divergências, mas, em linhas gerais, seguiram com um posicionamento pró-imprensa.

A discussão do direito de ser esquecido pressupõe o embate jurídico entre dois princípios constitucionais: o da intimidade e o da liberdade de imprensa. Eles são colocados lado a lado e, juntamente com as peculiaridades de cada caso, o judiciário decide qual deles deve prevalecer. Não existem parâmetros totalmente objetivos para serem enquadrados e padronizados entre os casos e, por isso, é incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro reconhecer de forma absolutista o esquecimento. 

Como tentativa de construir parâmetros para o tema, o Ministro Barroso5 exarou entendimento com a descrição de alguns requisitos que possuem o condão de julgar um fato noticiado de forma pública como lícito e dentro dos limites da liberdade de imprensa. Os parâmetros citados são: veracidade do fato ocorrido, descartando-se as famosas fake news; a fonte das informações e a licitude do meio; a pessoa noticiada, caso ela seja pessoa pública ou de relevância nacional; o local e natureza do fato; o interesse público daquele fato noticiado e o temor histórico brasileiro em relação ao tolhimento da liberdade de imprensa e a gravidade que isso representa. 

O esquecimento é um instituto que envolve garantias fundamentais imprescindíveis a todo cidadão, com pedidos de minorias e pessoas em situações de vulnerabilidade, considerando a dificuldade de se reinserir na sociedade diante dos fatos noticiados. Esse foi o caso de Lida Mayret6, que se insurgiu contra fato que noticiou sua prisão por posse de drogas, alegando dificuldades em sua vida profissional e pessoal. Nesse caso específico, o pedido foi julgado improcedente, pois o veículo de comunicação que noticiou os fatos não teria agido de forma ilícita, considerando também os critérios defendidos por Barroso de que um crime, por si só, possui relevância pública e essencial de memória dos aspectos socioeconômicos de cada época.

O presente tema foi objeto do Recurso Extraordinário nº 1.010.606, o qual teve seu julgamento concluído no dia 11 de fevereiro de 2021 pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (“STF”). A decisão, com repercussão geral, negou o reconhecimento do direito ao esquecimento na esfera cível, quando invocado pela própria vítima ou seus familiares.

No referido caso, a família de Aída Curi, jovem assassinada após uma tentativa de estupro em 1958, no Rio de Janeiro, recorreu da decisão que negou o pagamento de danos morais pelo uso da imagem da vítima em programa de TV. A família defendia a aplicabilidade do direito ao esquecimento, pois a reconstituição do crime anos depois e sem prévia autorização provocou sofrimento aos familiares. 

No julgamento do Recurso Extraordinário, a maioria dos Ministros seguiu o voto do relator do processo, Ministro Dias Toffoli, no sentido de que o direito ao esquecimento não está previsto no ordenamento jurídico e não é compatível com a Constituição Federal, sendo uma restrição “excessiva e peremptória” à liberdade de expressão. 

Segundo Toffoli e em consonância com os critérios defendidos por Barroso, é indispensável delimitar o alcance do direito ao esquecimento através da licitude da informação e do decurso do tempo, de modo que a conclusão deste caso não deve ser generalizada para outras áreas, devendo ser analisado caso a caso, de acordo com as suas peculiaridades. 

Foram nove votos contrários ao direito ao esquecimento, vencido apenas o ministro Edson Fachin, o qual entendeu pela possibilidade de reconhecimento do instituto, desde que analisado conforme cada caso e com aplicação em situações excepcionais. 

Após quatro sessões de julgamento, por 9 votos a 1, o STF fixou a seguinte tese de repercussão geral: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível7.

A decisão do STF é diferente do entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2013, quando do julgamento do Recurso Especial interposto contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no qual houve o reconhecimento do direito ao esquecimento, mas este foi afastado do caso concreto.

Com o resultado do julgamento pelo STF, ficou definido que o direito ao esquecimento não deve ser reconhecido nos casos de divulgação de fatos/dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação, sejam eles analógicos ou digitais, devendo os excessos serem analisados caso a caso, com base em parâmetros constitucionais e na legislação infraconstitucional. 

Apesar de o STF não ter reconhecido o direito ao esquecimento, a decisão com repercussão geral restringiu-se apenas à esfera cível, não sendo firmada qualquer orientação com relação às demais vertentes envolvendo o referido instituto. Resta saber como será a repercussão da decisão e sua aplicabilidade.

Data Protection Directive. 1995. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A31995L0046. Acesso em: 06.03.2021.

2 Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:62012CJ0131&from=EN. Acesso em: 6 mar 2021.

3 Disponível em: http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=218106&text=&dir=&doclang=EN&part=1&occ=first&mode=DOC&pageIndex=0&cid=969167. Acesso em: 6 mar 2021.

RE n° 1010606. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5091603. Acesso em: 23 fev 2021.

5 BARROSO, Luiz Roberto. COLISÃO ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITOS DA PERSONALIDADE. CRITÉRIOS DE PONDERAÇÃO. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA NO CÓDIGO CIVIL E NA LEI DE IMPRENSA. Revista de Direito Administrativo, 235, p. 1-36, jan./mar., 2004. p. 25-6.

6 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Autos do processo nº 1015515-59.2017.8.26.0100. 23ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo. Juiz: Marcos Duque Filho. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2S000OG6T0000&processo.foro=100&processo.numero=1015515-59.2017.8.26.0100&uuidCaptcha=sajcaptcha_d41179e0532e4eff8f513489fdd6e9b8. Acesso em: 23 fev 2021. 

7 Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroProcesso=1010606&classeProcesso=RE&numeroTema=786. Acesso em: 4 mar 2021.