Contencioso de proteção de dados no Brasil: cenário atual e futuro


Contencioso de proteção de dados no Brasil: cenário atual e futuro


Após longo processo legislativo, a recente entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira (Lei n° 13.709/2020 – “LGPD”) chancelou o cenário de preocupação com a privacidade e proteção de dados pessoais da sociedade como um todo, incluindo os titulares dos dados, o setor empresarial público e privado, e também os órgãos fiscalizadores, como o Ministério Público e o Procon. 

Apesar da ausência de operação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”), o contexto atual é de uma corrida das empresas e dos setores públicos brasileiros para adaptarem  seus processos e procedimentos à LGPD, bem como de um movimento constante de órgãos de proteção aos consumidores exercendo a defesa dos titulares dos dados, através de ações judiciais, inquéritos administrativos, notificações e investigações. O receio de demandas individuais ou coletivas, nas esferas administrativas e privadas, aumenta a cada dia. 

 O período atual indica maior preocupação dos setores comerciais e sociais brasileiros em se adaptarem às disposições da lei e à cultura de proteção dos dados que, apesar de não ser inédita,  se tornou mais robusta. De igual modo, os conflitos oriundos da tratativa de dados, malgrado já existentes antes da nova lei (em discussões baseadas, fundamentalmente, na Constituição Federal, no Códigos Civil - Lei n° 10.406/02, no Código do Consumidor - Lei n° 8.078/90 e, ainda no Marco Civil da Internet - Lei n° 12.965/14, sem contar legislações setoriais, como a bancária e de telecomunicações), vêm agora com mais força, sinalizando o início de um contencioso de proteção de dados propriamente, que revelará interpretações, entendimentos e desdobramentos no Judiciário diante da LGPD. 

Com efeito, a demora na tramitação legal não impediu a atuação de órgãos especializados. Desde os idos de 2018, quando do início da atuação da Comissão Especial de Proteção de Dados e Inteligência Artificial do Ministério Público do Distrito Federal, responsável pela propositura de ações civis públicas em face de empresas e seus supostos e/ou comprovados envolvimentos em incidentes de segurança de dados pessoais, vem-se notando pontual relevância do cenário contencioso. 

A situação ficou ainda mais clara quando, em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal referendou as liminares concedidas em cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade, propostas em face da Medida Provisória nº 954, que buscava estabelecer a disponibilização das bases de dados de Operadoras de Telefonia e de Comunicações Móveis (com relação a nomes, números de telefone e endereços de seus usuários), à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para que, no período da pandemia do coronavírus (Covid-19), as estatísticas oficiais produzidas pela instituição pudessem ser formuladas a partir de entrevistas não presenciais, preservando a integridade física de seus pesquisadores. A discussão sobre o referendo das liminares caracterizou importantíssimo capítulo na história da formação do arcabouço legal e jurisprudencial da privacidade e proteção de dados pessoais no Brasil. 

Foi então que, recentemente, outro caso de grande visibilidade ganhou os holofotes. 

A celeuma teve início com a propositura, pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (através de sua Unidade Especial de Proteção de Dados e Inteligência Artificial - “Espec”), de Ação Civil Pública em face do Serasa. Dentre as alegações da ação, sustentou o ente ministerial o descumprimento e a violação do direito constitucional da privacidade e das disposições da LGPD, do Código Civil, do Código de Defesa ao Consumidor e do Marco Civil da Internet, em razão da venda, pela ré, de dados de mais de 150 milhões de brasileiros, através de serviços denominados “lista online” e “prospecção de clientes”, o que se daria sem o devido consentimento dos titulares dos dados.  

Nesse sentido, alegou o Ministério Publico o suposto tratamento ilícito dos dados pessoais pela empresa ré, em que a venda de dados, envolvendo fins de marketing, configuraria desvio da finalidade para as quais os dados foram informados pelos cadastrados/titulares inicialmente, de modo que o consentimento precisaria ser obtido de forma específica. As vendas oferecidas pela ré envolveriam dados pessoais como nome, endereço, número de CPF, números de telefones, localização, perfil financeiro, poder aquisitivo e classe social dos consumidores, o que foi apontado pelo autor de demanda como questão agravante à ilicitude vislumbrada, a caracterizar a discriminação e a violação das liberdades civis dos titulares. 

Em primeiro grau, o pedido liminar formulado pelo ente ministerial foi inferido. O Magistrado de piso entendeu que o tratamento de dados pela empresa vem amparado no art. 7º, inciso X, da LGPD1  e que a atividade em questão seria lícita e corriqueira, invocando, nesse sentido, a importância econômica, concorrencial e comercial da venda dos dados para prospecção de clientes. Em resposta, o Ministério Público interpôs recurso.  

No dia 20 de novembro último, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (“TJDFT”), concedeu a antecipação de tutela ao recurso para determinar a suspensão da comercialização de dados pessoais dos respectivos titulares, por meio de dois serviços oferecidos pelo Serasa, com fins de publicidade/marketing e prospecção de clientes. Foi imposta multa no valor de R$ 5.000,00 por venda que fosse efetuada em descumprimento à determinação. 

A decisão, pró titular dos dados, veio fundamentada basicamente na ausência de consentimento como base legal para o processamento de dados. O Relator destacou: (i) a relevância da argumentação jurídica do Espec; (ii) que embora as informações fossem habitualmente fornecidas pelos titulares, ocorre desvio de finalidade quando do tratamento para fins de marketing; (iii) que os direitos fundamentais à privacidade, autodeterminação informativa e inviolabilidade da honra e da imagem precisam ser postos em ponderação; (iv) que a base de dados é imensa e massiva, contando com 150 milhões de CPFs. Nota-se que a decisão não considerou como atenuante o fato de a ré possuir espaço destinado à LGPD em sua plataforma. A Ação Civil Pública ainda está em fase inicial e a empresa de proteção ao crédito não se manifestou formalmente nem apresentou contestação até o momento. 

A decisão ora retratada causou inúmeros debates e críticas na comunidade jurídica brasileira, principalmente por considerar o consentimento do titular dos dados pessoais como único fundamento para processando quando, em verdade, a LGPD prevê inúmeras outras formas de justificação, como o legítimo interesse do controlador e, até mesmo, a proteção ao crédito (base esta que não existe no ordenamento europeu). 

A ação civil pública e a liminar concedida demonstram, outrossim, o longo caminho que os operadores do direito precisarão percorrer até que os posicionamentos sejam pavimentados, incluindo discussões sobre a aplicação de bases legais e a responsabilidade de agentes de tratamento, dois temas que passarão a ser pauta frequente de ações cíveis daqui em diante. 

Há que se pontuar, ainda, que a ausência de uma Autoridade Reguladora cumprindo suas funções também pode resultar em decisões dissonantes no Poder Judiciário, ocasionando certa insegurança jurídica, como aparenta ser o caso do exemplo acima. 

Os embates serão cada vez mais recorrentes, envolvendo os princípios da livre concorrência, da inovação comercial e econômica juntamente com os princípios da privacidade e do respeito aos direitos fundamentais dos titulares dos dados. Caberá ao judiciário e à ANPD, quando em operação, ponderar esses fundamentos e as disposições da lei, encontrando um caminho para a inovação dos setores econômicos e o desenvolvimento comercial, em alinhamento com a autodeterminação informativa dos titulares e o respeito aos princípios previstos em lei.   

 

1 - Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: (...) X - para a proteção do crédito, inclusive quanto ao disposto na legislação pertinente.