A silenciosa modernização legal


A silenciosa modernização legal


Publicado pelo portal Migalhas, em 10/08/2020

Você tem ideia da “revolução silenciosa” que o marco normativo brasileiro está sofrendo?

As crises política e econômica e a pandemia da Covid-19 ocupam os noticiários não sem razão, mas acabam monopolizando a pauta. Isso ofusca um profundo movimento de modernização legal pela qual o país está passando.

Certamente a reforma da previdência e a reforma tributária geram muita mídia, mas a renovação normativa é bem mais ampla que estes temas, por mais icônicos que sejam.

Nós fizemos uma pesquisa detalhada da produção normativa federal entre 1/1/19 e 7/7/20 (data de corte de nossa pesquisa), tabulamos os dados, analisamos e chegamos a achados bastante interessantes.

Entre emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias e decretos, verificamos 1.117 novas normas destes tipos, sendo 108 vinculadas à Covid-19 e 1.009 de pura reforma legal.

Em relação à Covid-19, vemos um alto uso de medidas provisórias – como seria de se esperar, e um pico de produção normativa em abril:

Em todo o período da pesquisa, desde janeiro de 2019, temos o seguinte:

Isso dá uma média de 56 novas normas por mês em condições normais (i.e. sem contar as normas relacionadas à pandemia).

Se observarmos as áreas do Direito alteradas, vemos que o espectro é amplo, com um forte viés no reposicionamento do Estado. Assim, a área que mais se destacou foi a de Direito Administrativo e Regulatório, seja pela reorganização interna do Estado, seja pela mudança na forma de sua atuação na economia e na sociedade:

Ao cruzarmos o tipo de norma editada com a área do Direito afetada, temos a seguinte situação:

Entretanto, essas são análises quantitativas. E qualitativamente, como se comporta a mudança em questão?

Em nossa análise, atribuímos, norma a norma, critérios de relevância entre alto, médio e baixo. Antes de passar às conclusões, porém, é preciso fazer uma ressalva. Por mais que tenhamos buscado ser objetivos, é impossível eliminar a subjetividade e os vieses de nossa própria formação e área de atuação, que, por vezes, nos fazem compreender melhor o alcance e importância de certos tipos de normas em detrimento de outras. Outro analista poderia ter entendimento distinto.

Dito isso, elaboramos um gráfico com as normas “não-COVID”, por entender que as incluir ocasionaria a distorção da análise:

A impressão inicial leva o leitor a crer que pouco efetivamente mudou, haja vista o elevado número de normas que seriam de baixa relevância. Não obstante, uma verificação mais aprofundada evidência que mesmo esses 8% de alta relevância possuem um impacto significativo em nosso marco normativo. São exemplos de alta relevância:

1. Reforma da Previdência Social;

2. Reforma da Previdência dos Militares;

3. Novo Marco do Saneamento Básico;

4. Lei de Liberdade Econômica;

5. Lei de Crimes de Abuso de Autoridade;

6. Nova Lei de Franquia;

7. Adaptação da modalidade de outorga de serviço de telecomunicações de concessão para autorização;

8. Criação da conta do tipo poupança social digital;

9. Criação do Contrato de Trabalho Verde e Amarelo (mudanças na legislação trabalhista);

10. Tratamento tributário sobre variação cambial de investimentos realizados por instituições financeiras;

11. Estabelecimento dos limites de gastos de campanha para as eleições municipais;

12. Instituição da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas;

13. Instituição do Programa Médicos pelo Brasil;

14. Controle social das agências reguladoras;

15. Previsão de mediação ou arbitragem para a definição dos valores de indenização nas desapropriações por utilidade pública;

16. Alteração da Política Nacional de Mobilidade Urbana, para dispor sobre a elaboração do Plano de Mobilidade Urbana pelos Municípios;

17. Instituição do Plano Nacional de Internet das Coisas e  disposições sobre a Câmara de Gestão e Acompanhamento do Desenvolvimento de Sistemas de Comunicação Máquina a Máquina e Internet das Coisas;

18. Alteração das leis sobre a interrupção e a religação ou o restabelecimento de serviços públicos;

19. Aprovação da Estratégia Nacional de Segurança Cibernética;

20. Estabelecimento de técnica e requisitos para a digitalização de documentos públicos ou privados, a fim de que os documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais; e

21. Instituição do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas.

Como exemplos de média relevância temos:

1. Instituição do Comitê Interministerial de Combate à Corrupção;

2. Estabelecimento de critérios de distribuição dos valores arrecadados com os leilões da cessão onerosa;

3. Alteração da Política Nacional de Cooperativismo e instituição do regime jurídico das sociedades cooperativas;

4. Alteração do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins;

5. Disposições sobre os cadastros positivos de crédito;

6. Regulamentação do trabalho temporário; e

7. Aprimoramento dos procedimentos de gestão e alienação dos imóveis da União.

Por fim, os exemplos de baixa relevância seriam:

1. Concessão do título de Capital Nacional do Chocolate Artesanal à Gramado;

2. Reconhecimento como de interesse do Governo brasileiro a participação estrangeira no capital social do Banco Inter S.A.;

3. Inscrição do nome de Ulysses Silveira Guimarães no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria;

4. Instituição do Comitê Consultivo de Fotônica;

5. Instituição do Grupo de Trabalho Interministerial para a implementação das diretrizes da OCDE para as Empresas Multinacionais;

6. Alteração da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados; e

7. Instituição de medidas de prevenção e repressão ao contrabando, ao descaminho, ao furto, ao roubo e à receptação.

Havendo 1.117 novas normas federais entre janeiro de 2019 e 07 de julho de 2020, o breve apanhado acima serve apenas como amostra do que está sendo alterado. Há muito mais, em diversas searas.

Se essa produção normativa é maior, menor ou similar ao mesmo período de primeiros mandatos de presidentes anteriores, é matéria para outro artigo.

E, ainda vêm por aí, novas normas bastante relevantes: lei de licitações, lei de concessões e PPPs, debentures de infraestrutura, lei do gás, simplificação do licenciamento ambiental, incentivos ao transporte marítimo por cabotagem, desvinculação de fundos públicos, regime de autorização para ferrovias, etc.

Todo esse conjunto de dados serve para voltar ao ponto inicial: um profundo redirecionamento normativo. Há inúmeras políticas públicas que estão sendo modernizadas, ampliadas, revisitadas e ajustadas. Várias normas caminham no sentido de aliviar a pressão do Estado sobre indivíduos e empresas, e outras tantas vão em direção à proteção social.