A mulher e o Código Civil


A mulher e o Código Civil


Por Tatiana Lima e Sara Guimarães

Um dia não tivemos voz, hoje, além de voz temos o empoderamento, que nos faz desejarmos ser mais. Outro dia nós éramos coadjuvantes da nossa vida e da família, hoje, somos protagonistas e chefes de família, donas de nossas escolhas e responsáveis por nossas ações. Tivemos que enfrentar muitos dogmas, preconceitos e até mesmo a lei para conseguirmos o nosso despertar. 

Com efeito, toda transformação social perpassa, inegavelmente, por um processo de ruptura, um longo caminho de amadurecimento, revisão de costumes e, claro, de muita luta. Não foi diferente com o primeiro código civil do Brasil – o Código Civil de 1916 –, que entrou em vigor 94 anos após a independência, e que refletia o espectro patriarcal existente à época, colocando a mulher à margem do homem e da sociedade. 

O homem era a figura central. Já no início de sua redação, a segregação feminina ficava bem evidente. “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”, dispunha o artigo 2º. De modo ainda mais expresso, o artigo 6º, inciso “II” dava conta da subjugação da mulher casada aos desígnios do cônjuge: “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: (...) as mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal”. Mais adiante, o artigo 233 declarava “o marido é o chefe da sociedade conjugal”.

O Código permitia até mesmo que o homem anulasse o matrimônio caso viesse a saber que a mulher já era deflorada quando das núpcias (artigo 178, §1º), algo completamente inconcebível nos tempos atuais. Os bens porventura pertencentes à mulher eram administrados por seu cônjuge, bem como emanava dele a autorização para o trabalho. Os filhos contraídos fora do casamento eram renegados, condenados à clandestinidade, sendo expressamente proibido reconhecê-los (artigo 358). O casamento era um contrato indissolúvel, que só tinha fim com a morte de um dos cônjuges (artigo 315, parágrafo único). Os alimentos só eram devidos à mulher “honesta e pobre”.

O tratamento jurídico dado à mulher apenas começa a apresentar ares de mudança em 1932, com o Código Eleitoral1, que previu o voto secreto e universal, permitindo às mulheres o direito de votar. Do ponto de vista do Direito Civil, essa mudança foi um pouco mais tardia, iniciando-se em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada2, ou seja, pouco menos de 60 anos atrás. Com o Estatuto da Mulher Casada, a mulher passou a ser colaboradora da sociedade conjugal, sendo-lhe permitido ter profissão e bens particulares. Mais de uma década depois, uma grande vitória foi alcançada: em 1977 foi promulgada a Lei do Divórcio3, que permitiu a dissolução do casamento ainda em vida, além de outras conquistas femininas.

Somente 86 anos após o Código de 1916 foi publicado o Código Civil de 2002. Ao longo desse tempo, muitas foram as transformações sociais vividas pela época, bem como as transformações jurídicas, com enfoque para a promulgação da Constituição Federal de 1988, que igualou homens e mulheres em direitos e obrigações. As mulheres passaram a ter mais voz e a independência feminina virou uma realidade. 

O Código de 2002, embora não abandone totalmente o viés patriarcal, representou um importante avanço na luta das mulheres pelo reconhecimento de direitos e pela igualdade. O pátrio poder foi, em tese, abandonado. O casamento deixou de ser o único caminho para se tornar uma escolha feminina, bem como deixou-se de exigir causa para o divórcio ou culpa pela falência do matrimônio. A guarda dos filhos passou a ser compartilhada, não sendo mais uma obrigação exclusivamente feminina. 

A administração dos seus bens – e de sua própria vida – passou a competir à própria mulher, podendo inclusive, pedir judicialmente a alteração do regime do casamento quando não concordar com o comportamento financeiro do cônjuge, passando a ser por separação total.  

Começou, então, o processo de reconhecimento do empoderamento feminino, um tanto tardio, mas efetivo, caminho sem volta para a positivação efetiva das garantias e direitos fundamentais da mulher. 

Hoje, quase duas décadas depois da entrada em vigor do Código Civil de 2002, e apesar de tanta luta, ainda existem desigualdades gritantes, como o triste fato de as mulheres ganharem menos do que os homens4. Algumas de nós ainda são mortas pelo simples fato de ser mulher5, sendo muitas vezes vítimas de puro ódio gratuito.

A positivação da independência e autonomia feminina ainda é muito recente comparada aos anos de subjugação. A luta, portanto, continua incansável. Continuaremos quebrando os paradigmas e as estatísticas e conquistando nossos lugares de fala, nossos espaços na advocacia, na política, no mundo corporativo, nos tribunais e em todos os outros lugares que outrora eram ocupados apenas por homens. Continuaremos lutando para que, sobretudo, sejamos tudo aquilo que queremos ser!

Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932.

Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962.

Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977.

Segundo dados do IBGE (2019), as mulheres representam 45,3% da força de trabalho do Brasil, mas recebem apenas 79,5% do total do salário pago aos homens. Fonte: encurtador.com.br/pwACS

“O Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018, aponta levantamento feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média”. Fonte: encurtador.com.br/lsHY0.