Transação tributária como medida de redução do Contencioso Tributário


Transação tributária como medida de redução do Contencioso Tributário


Por Janaína Samogim e Maristela Miglioli

O tema da transação tributária aguardou 53 anos para sair do papel e atender à expectativa dos operadores do direito tributário e dos brasileiros. Mas será que atendeu?

Será que a nova legislação realmente trouxe uma solução efetiva para os contribuintes, ou visa, apenas, a atender os anseios arrecadatórios de administração pública, ainda mais agora, em face do repentino e inesperado aumento de gastos públicos na área da saúde?

Em um primeiro momento, confessamos ter ficado extremamente satisfeitas com essa “novidade”, semelhante aos acordos negociados entre as partes conflitantes, tantas vezes visto até mesmo nas séries televisivas de cunho jurídico (Law & Order é um exemplo).

Num segundo momento, as lições acadêmicas falaram mais alto e vieram à tona os princípios norteadores da administração pública: indisponibilidade do interesse público e sua prevalência sobre o (interesse) privado, lei de responsabilidade fiscal etc.

E, por fim, a terceira etapa de reflexões foi mais objetiva e focada na realidade atual: por um lado, o próprio Código Tributário Nacional, editado em 1966 – e aqui se vão os 53 anos citados inicialmente – já previa esse instituto1 e, por outro lado, o cenário globalizado está a exigir instrumentos mais eficazes de solução de conflitos fiscais, do que é exemplo a Ação 14 do projeto conhecido como “BEPS” (Base Erosion and Profit Shifting – Erosão de Base Tributária e Desvio de Lucros), proposta pela OCDE em conjunto com o G-20. 

De fato, é inegável que a inserção do Brasil no palco internacional (algo inimaginável em 1966) só se tornará efetiva com a ruptura de paradigmas internos doutrinários e culturais, permitindo, assim, uma maior flexibilidade e rapidez nas tratativas conflitivas, potencialmente atraente aos olhos dos investidores estrangeiros. 

Aliás, em termos de velocidade na solução de conflitos, os dados disponíveis são assustadores e só reforçam a necessidade de abertura de novos caminhos: o estudo intitulado “Os desafios do contencioso tributário no Brasil”, publicado em Novembro de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) e pela prestigiosa empresa de auditoria Ernst & Young2, aponta que: (i) a conclusão de um processo tributário no Brasil consome, em média, 18 (dezoito) anos e 11 (onze) meses, considerando-se as etapas administrativa e judicial; (ii) o estoque de créditos tributários3 paralisados em alguma etapa do contencioso tributário é da ordem de 50,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2018.

Isso, por si só, já legitima a introdução, no nosso sistema jurídico-positivo, dos institutos da transação tributária e – quiçá até – da própria arbitragem, objeto do Projeto de Lei nº 4.257/2019 e praticada em Portugal de forma pioneira.  Exemplos dos Estados Unidos e da Austrália também devem ser seguidos: no primeiro (EUA), há a possibilidade de acordos entre as partes durante a fiscalização e, no segundo (Austrália), há uma revisão das conclusões da autoridade fiscal por parte de uma autoridade independente.   

Neste cenário, voltamos ao entusiasmo inicial: a transação tributária prevista na Medida Provisória nº 899/19 (conhecida como “MP do contribuinte legal”), recentemente4 aprovada na Câmara dos Deputados e enviada para análise do Senado (onde a expectativa é também de aprovação, que precisa ocorrer até 25.03.2020), deve ser bem recebida e explorada pelos operadores da área. 

Em linhas gerais, esse instituto deveria se assemelhar à transação civil, pela qual as partes convencionam livremente acerca do objeto litigioso já instaurado (pelo texto da MP, não há possibilidade de transação em torno de débitos ainda não carreados à fase de cobrança), implicando em renúncias mútuas em prol da solução definitiva do impasse. 

Em âmbito civil, caso os termos transacionados sejam descumpridos, torna-se exigível o que foi ali estipulado, e não o que existia antes. 

Mas, na transação tributária ora em análise, não é bem assim que “a banda toca”: havendo descumprimento por parte do contribuinte, o débito tributário retorna ao estado anterior à transação, tanto em volume quanto em acréscimos moratórios (juros e correção), ressalvados os valores já quitados. 

E aqui iniciamos a quarta etapa de reflexões sobre o tema, com alguma análise crítica (superficial, por ora) em torno das condições concretamente estabelecidas pela MP e pela Portaria da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional que a regulamentou5, sempre no intuito de fomentar o debate.

A MP prevê, basicamente, três modalidades de transação: (i) a proposta individual ou por adesão, na cobrança da dívida ativa; (ii) por adesão, nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo; e, por fim, (iii) por adesão, no contencioso administrativo de baixo valor.

Note-se que somente a primeira modalidade admite a iniciativa da proposta por parte dos contribuintes. Nas demais, isso não é permitido, devendo ser exercida a opção somente por “adesão” (como ocorre, por exemplo, nos contratos entre os particulares e bancos, operadoras de planos de saúde, operadoras de telefonia móvel, provedores de internet etc.). 

“Adesão” significa que a parte credora (no caso, o fisco federal) divulga as suas condições e os interessados “aderem” ou não, conforme sua livre conveniência. E assim se fez: a PGFN publicou o primeiro edital6 em 04.12.2019, com prazo inicial de adesão até 28.02.2020, posteriormente prorrogado para 25.03.20207. Evidente que essa modalidade (“por adesão”) já desqualifica a natureza transacional do instituto, por não admitir livre negociação entre as partes. 

Aparentemente, a modalidade “por adesão” estaria restrita aos débitos de difícil ou quase impossível recuperação, tanto que o edital contém anexos com “... a relação de contribuintes convocados para cada modalidade de transação por adesão8, tais como: (i) as pessoas jurídicas com CNPJ baixado por inaptidão, por inexistência de fato, por omissão contumaz no cumprimento das obrigações fiscais, por falência/liquidação judicial ou extrajudicial, ou por localização desconhecida; (ii) as pessoas, físicas ou jurídicas,  com débitos inscritos em dívida ativa há mais de 15 (quinze) anos, sem parcelamento, garantia ou suspensão por decisão judicial; (iii) as pessoas físicas com CPF baixado por falecimento. 

Nesse cenário de quase irrecuperabilidade de créditos9, faz sentido a proposta de transação por adesão, por questões de lógica e eficiência: recupera-se o que for possível daquelas pessoas – que, pela própria condição, não conseguem pagar os débitos e não estão dispostos a discuti-los, no presente ou no futuro –, sem alternativas ao fisco. 

Mas como ficam os contribuintes com capacidade de pagamento que, diante dos riscos, incertezas e demora na solução do litígio, buscam uma solução mais racional do ponto de vista econômico e, sob essa premissa, desejam solucionar suas pendências fiscais? A estes, resta uma segunda modalidade de transação “por adesão”, aplicável aos débitos envolvidos em “relevante e disseminada controvérsia jurídica” do contencioso judicial ou administrativo (entenda-se isto como as grandes teses tributárias, normalmente tratando de questões constitucionais e legais, a serem resolvidas no âmbito dos Tribunais Superiores). 

Contudo, na regulamentação proposta pela PGFN para esta segunda modalidade “por adesão”, também houve um distanciamento da natureza transacional do instituto e uma aproximação ao modelo de um parcelamento (tal como o REFIS, por exemplo), na qual o fisco dita as regras unilateralmente (pagamento inicial irrisório, grandes descontos sobre os acréscimos legais, elasticidade temporal nas parcelas, que podem atingir 84 meses) e os interessados exercem a opção (ou não) conforme melhor lhes convier. Ou seja, embora louvável a iniciativa, isto ainda não é uma verdadeira “transação”. 

Tem-se, ainda, a modalidade de transação por iniciativa do devedor – que, a nosso ver, é a única que carrega o DNA de uma legítima transação, no sentido real e compatível com a natureza do instituto – admitida para débitos totais consolidados superiores a R$ 15 milhões. Neste caso, o interessado deverá comparecer à unidade da Procuradoria competente com o “plano de recuperação fiscal”10 descrevendo as causas específicas de sua dificuldade econômico-patrimonial, comprovadas por: (i) demonstrações contábeis dos últimos 3 (três) anos; (ii) extratos bancários; (iii) relação de bens e direitos (inclusive dos controladores, administradores, gestores e representantes legais) e respectivos laudos de avaliação; (iv) relação de eventuais credores, contendo a natureza, classificação e valor atualizado da dívida; (v) relação de eventuais processos judiciais, inclusive trabalhistas, com os respectivos valores; (vi) relação de bens e direitos que comporão as garantias à transação. 

Apresentado o “plano”, a Procuradoria irá avaliá-lo, inclusive com hipótese de promover reunião com o contribuinte e/ou inspeção em seu estabelecimento comercial, industrial ou profissional. Não há prazo definido para resposta, mas há uma espécie de “escalonamento ” das autoridades competentes para assinar o termo (se deferido), na medida do volume do débito envolvido (quanto mais alto o débito, mais assinaturas são exigidas), o que faz sentido em face das preocupações (agora reforçadas pelos gastos extras exigidos pela pandemia do coronavírus) em torno da renúncia fiscal e da lei de responsabilidade fiscal.   

Uma vez deferido o “plano” e assinado o respectivo termo de transação, a cobrança do débito, administrativa ou judicial, ficará suspensa até o cumprimento das condições por parte do contribuinte, cujo nome não será incluído no Cadin ou em lista de devedores (ou destes excluídos, se o caso), não haverá protesto da dívida (ou cancelados os já existentes, se o caso) e recupera-se a regularidade fiscal. Estas consequências são resultantes de qualquer das modalidades.

Por fim, vale mencionar que a transação não é admitida, em qualquer modalidade, para débitos decorrentes do FGTS, do Simples Nacional, de multas qualificadas e penais. 

Enfim, analisando o restrito cenário legislativo sobre o tema (há somente dois atos normativos sobre o tema: a MP e a Portaria da PGFN, supra citadas), parece-nos que a intenção do legislador foi melhor do que o respectivo resultado: há de se evoluir na busca por uma autêntica transação tributária, com liberdade e amplitude de concessões mútuas, em prol da racionalidade na solução dos litígios. 

O atual cenário de pandemia deveria encorajar o Congresso Nacional a ampliar o mecanismo da transação tributária, de forma a torná-lo instrumento de rápida e eficaz busca por recursos públicos, agora tão necessários em prol dos cidadãos brasileiros e das empresas, que se vêem inadimplentes e sem a regularidade fiscal necessária à exploração de suas atividades empresariais.

Esse círculo vicioso, que polariza fisco e contribuinte como inimigos mortais, deve ser superado em resgate da nossa economia, sendo esta a melhor contribuição que se pode extrair da transação tributária. Afinal, é desejo de todos um cenário de empresas sadias, que produzam riqueza e alavanquem o crescimento do nosso país.

Código Tributário Nacional (CTN), artigo 171.

A pesquisa resultou da análise dos dados do Relatório Anual de Atividade da Receita Federal de 2017, do relatório de julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) de 2015 e do Relatório “Justiça em números” de 2017 e 2018, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

R$ 3,4 trilhões, dividido entre Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Secretaria da Receita Federal do Brasil.

Em 18.03.2020. 

Portaria PGFN nº 11.956/19.

Edital PGFN nº 01/2019.

Edital PGFN nº 01/2020.

Ministério da Economia. Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Acordo de Transação por Adesão. Disponível em: <www.pgfn.fazenda.gov.br/servicos-e-orientacoes/editais-de-notificacao/acordo-de-transacao-por-adesao>. Acesso em 25 março 2020.

Em números, representa R$ 1,5 trilhões da totalidade de débitos em aberto. 

10 Denominação extraída da Medida Provisória nº 899/19.