Série Saneamento Básico | A prestação regionalizada dos serviços de saneamento


Série Saneamento Básico | A prestação regionalizada dos serviços de saneamento


Uma série de entraves legais e institucionais, principalmente as disputas em torno da titularidade desses serviços resultaram em poucos avanços na expansão do acesso aos serviços de saneamento básico no País, mesmo após a promulgação da Lei Federal nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007 (“Lei do Saneamento”).

Em relação à titularidade para a prestação dos serviços de saneamento, a competência constitucionalmente conferida aos estados para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, a fim de integrar a organização e o planejamento da execução de funções públicas de interesse comum, parecia usurpar a competência constitucionalmente outorgada aos municípios para tratar dos assuntos de interesse local.

A questão colocada objetivamente envolvia a caracterização dos serviços de saneamento como função pública de interesse comum ou de interesse local.

Abordando o tema, o Supremo Tribunal Federal proferiu, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.842 – Rio de Janeiro, decisão afirmando que apesar da competência sobre o serviço de saneamento básico ser municipal, a função pública deste serviço frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Na ocasião, esta decisão foi por muitos intérpretes considerada como a aguardada solução para o conflito envolvendo a competência constitucional referente aos serviços de saneamento.

O STF ratificou a competência municipal para os serviços de saneamento básico e definiu que serviços públicos comuns aos municípios de regiões metropolitanas devem ser geridos por um conselho integrado pelo estado e pelos municípios envolvidos, o qual deve buscar uma solução compartilhada para a prestação desses serviços. Referido julgado não esclareceu, entretanto, como seria operacionalizado este compartilhamento de competências, mantendo acesa a discussão.

Em 2015, o entendimento do STF foi incorporado pela Lei Federal nº 13.089, de 12 de janeiro daquele ano (“Estatuto da Metrópole”), cuja promulgação buscou unificar o tratamento das regiões metropolitanas, atribuindo o exercício da titularidade dos serviços nestas regiões ao colegiado interfederativo, prevendo, para os demais casos de interesse comum, o exercício da titularidade por meio de instrumentos de gestão associada como os consórcios públicos ou convênios de cooperação.

Apesar desse novo cenário normativo e jurisprudencial, a questão acerca da titularidade ainda suscitava muitos debates e carecia de um tratamento específico pela legislação de saneamento. Neste sentido, o Projeto de Lei nº 4.162/19, que estabelece o novo Marco Regulatório do setor, foi aprovado pelo Senado em 24 de junho de 2020.

A definição da titularidade dos serviços de saneamento básico no Novo Marco Regulatório utilizou, como critério, a dimensão do interesse envolvido1. Ou seja, os municípios ou o Distrito Federal serão os responsáveis quando se tratar de serviço de interesse local (definido como funções públicas e serviços cujas infraestruturas e instalações operacionais atendam a um único município); e, quando se tratar de serviço de saneamento básico de interesse comum (aquele em que ocorre o efetivo compartilhamento de instalações operacionais), a titularidade será exercida pelo estado em conjunto com os municípios integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.

Importante destacar que o novo Marco Regulatório também prevê o exercício da titularidade dos serviços de saneamento por gestão associada (consórcio público ou convênio de cooperação), conforme disposto no art. 241 da Constituição Federal.

A definição da titularidade dos serviços de saneamento com base na dimensão do interesse envolvido e, também, por meio de instrumentos de gestão associada, está em linha com um dos princípios basilares do novo Marco do Saneamento, qual seja, a “prestação regionalizada dos serviços”, modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território alcance mais de um município.

A formação de blocos municipais para a prestação integrada dos serviços de saneamento básico não é novidade. A constituição de consórcios municipais já era possível. A inovação no Novo Marco Regulatório é atribuir aos estados a competência na estruturação desses blocos.

Dessa forma, além dos casos das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões, a regionalização dos serviços também poderá ser estruturada por meio da criação (i) de unidade regional de saneamento básico, instituída pelos estados e composta por municípios não necessariamente limítrofes para atender às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos; ou (ii) de bloco de referência estabelecido pela União, subsidiariamente aos estados, e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos municípios titulares dos serviços2.

Nota-se que, apesar da adesão a essa modalidade integrada de prestação dos serviços ser facultativa aos seus titulares, o Marco Regulatório aprovado apresenta uma série de “incentivos” à sua adoção, como, por exemplo, a flexibilização do prazo para atingimento das metas de universalização; a priorização à alocação dos recursos públicos federais não onerosos e ao recebimento de apoio técnico e financeiro da União para adaptação dos serviços ao disposto na Lei de Saneamento.

O estímulo à formação de blocos de municípios para o desenvolvimento regionalizado dos serviços de saneamento básico tem por objetivo a geração de ganhos de escala e garantir a viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços, com vistas à universalização, na medida em que integra municípios com diferentes níveis de atratividade em um mesmo pacote de prestação dos serviços. Busca-se, por consequência, resolver o problema do subsídio cruzado. A expectativa é que a regionalização dos serviços de saneamento permitirá que municípios pequenos e deficitários tenham a oportunidade de construir estruturas e instalações mais avançadas para melhorar a qualidade dos serviços prestados.

Em teoria, a discussão sobre a titularidade e competência para prestar serviços de saneamento, a definição de interesse comum e interesse local e a possibilidade de formação de blocos municipais buscando o ganho de escala e a eficiência almejada para a viabilização técnica, econômica e financeira da prestação dos serviços de saneamento foi harmonizada.

Acreditamos no ganho evolutivo alcançado com a aprovação do Novo Marco Regulatório, construído para atender as expectativas da sociedade e alcançar a universalização da prestação dos serviços de saneamento. A sua aplicação prática e verificação empírica deverão comprovar que a finalidade da norma será realmente alcançada com a necessária segurança jurídica na prestação regionalizada dos serviços de saneamento, sobretudo para a realização dos vultuosos investimentos essenciais para o setor e construção das novas modelagens de concessões e parcerias público privadas.

Art. 8º Exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico:

I - os Municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local;

II - o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum.

2 A União poderá ficar a cargo de estabelecer os blocos de referência quando o Estado não o fizer no prazo de 1 (um) ano da publicação da lei resultante do Projeto de Lei nº 4.162/19.