Programa de Integridade como obrigação para contratação com o Poder Público


Programa de Integridade como obrigação para contratação com o Poder Público


Por Luiz Eduardo Salles e Ingrid Santos*

Contextualização

Não é novidade que a legislação brasileira anticorrupção tem se tornado mais densa, especialmente após a promulgação da Lei 12846/13, a “Lei da Empresa Limpa”. É novidade, porém, a instituição da obrigação de Programas de Integridade (ou Programas de Compliance) como requisito para contratação com o Poder Público. A transformação do compliance em obrigação parece ser a tendência de curto-prazo mais impactante para aquelas empresas que ainda não contam com Programas de Integridade estabelecidos.

Antes da Lei da Empresa Limpa, a legislação brasileira anticorrupção continha principalmente regras esparsas relacionadas à definição e punição de atos de corrupção. A principal novidade trazida pela Lei da Empresa Limpa foi a introdução da responsabilidade objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas por “atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira” (art. 1º). Outro ponto importante foi a previsão, dentre os fatores considerados para aplicação de sanções (a saber, como redutor de penalidades), da “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e conduta no âmbito da pessoa jurídica” (art. 7º, VIII), cujos parâmetros de avaliação foram posteriormente regulamentados através do Decreto 8420/2015. 

Portanto, o mecanismo da Lei da Empresa Limpa contempla tanto a responsabilidade da pessoa jurídica em casos de corrupção, quanto um incentivo para a adoção de Programas de Integridade: receber um desconto, caso tal responsabilidade se veja configurada. A caracterização do Programa de Integridade como atenuante à penalidade para a empresa em caso de corrupção não é a única (e, normalmente, nem a mais importante) razão para a implantação de um Programa. De todo modo, esse incentivo estabelecido pela Lei da Empresa Limpa é um dos fatores que explicam a crescente conscientização do empresariado quanto ao tema. 

Nesse contexto, destaca-se o recente movimento, em âmbito estadual, no sentido de tornar obrigatória a existência de Programas de Integridade nas pessoas jurídicas que mantêm relações contratuais com o Poder Público em diferentes níveis. Esse movimento, que já se concretizou no Distrito Federal e no Rio de Janeiro, pode representar aquele “incentivo” (obrigação) que faltava para a instituição de Programas de Integridade por empresas que ainda não haviam dado esse passo.

As iniciativas legislativas no RJ e no DF

Aspectos gerais

A Lei 6112/2018 (1) do Distrito Federal e a Lei 7753/2017 (2),  do Estado do Rio de Janeiro são exemplos da transformação do compliance anticorrupção em obrigação. Ambas requerem a implantação de Programa de Integridade nas empresas que contratarem, por meio de contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privada com termo igual ou superior a 180 dias, com a Administração Pública do Distrito Federal e do Rio de Janeiro, respectivamente, nos termos que especificam. 

O objetivo ostensivo da obrigatoriedade do Programa de Integridade é idêntico em ambos os casos: (i) proteger a administração pública distrital/estadual de atos lesivos que acarretem prejuízos financeiros causados por irregularidades, desvios de ética e de conduta e fraudes contratuais; (ii) garantir que os contratos sejam executados em conformidade com a lei; (iii) reduzir riscos relativos aos contratos, provendo maior segurança e transparência; e (iv) melhor desempenho e qualidade nas relações contratuais (art. 2º, I a IV, Lei nº 7753/17 e art. 3º, I a IV, Lei nº 6112/18).

No Estado do Rio de Janeiro, a exigência se aplica aos contratos a partir de  R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços (Lei 7753/2017, art. 1º, caput). No Distrito Federal, a exigência se aplica a contratos cujos limites de valor de contratação estejam acima de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) (Lei 6112/18, art. 1º, caput), independentemente de terem sido celebrados com ou sem dispensa de processo licitatório. Note-se que a obrigação também se aplica aos contratos que ainda estejam em vigor cuja duração seja superior a 12 meses, ainda que a celebração do contrato tenha se dado antes da Lei.

Prazo de regularização e avaliação

Tanto no DF quanto no RJ, a pessoa jurídica sujeita a aplicação de tais leis deverá implantar Programa de Integridade no prazo de 180 dias corridos contados da data da celebração do contrato. Note-se que, no caso do DF, para os contratos em vigor com duração superior a 12 meses, o prazo de implantação é contado a partir da publicação da Lei Distrital (art. 5º da Lei 6112/18), ou seja, a partir de 6/2/2018. 

Os critérios de avaliação dos programas de integridade dessas duas leis praticamente espelham aqueles do art. 42 do Decreto 8420/15, com o acréscimo da necessidade de comprovar ações de promoção da cultura ética e de integridade através de palestras, seminários, workshops, debates e eventos similares.

Um ponto questionável nas duas leis e que, aqui, é objeto de crítica, é a designação, à figura do gestor de contrato (ou ao fiscal de contrato) no âmbito da administração pública, das atribuições de fiscalizar a implantação do Programa e de informar ao ordenador de despesas sobre não cumprimento da implantação no prazo legal ou sobre cumprimento fora do prazo legal (art. 11 da Lei 7753/17 e art. 13 da Lei 6112/18). Essa configuração traz, em tese, novo risco inerente aos contratantes, ao atribuir ao mesmo Agente Público a responsabilidade pela gestão ou fiscalização do contrato e pela avaliação sobre a efetividade do Programa de Integridade. Se o caminho é transformar o compliance anticorrupção em obrigação, premissa que não é objeto desta nota, havia outros caminhos menos arriscados a eleger (por exemplo, atribuir a um verificador independente, ou a outro órgão da Administração, a avaliação sobre a efetividade dos Programas).

Penalidades

Tanto a lei do DF quanto a do RJ preveem aplicação de penalidades às empresas que descumprirem as exigências correspondentes. No caso do RJ, a Administração Pública poderá aplicar à empresa contratada multa de 0,02% por dia, incidente sobre o valor do contrato, sendo que o a soma dos valores básicos das multas moratórias será limitada a 10% do valor do contrato. Em caso de não cumprimento durante o período contratual, a empresa ficará impossibilitada de contratação até regularização (art. 6º da Lei 7753/17).

No caso do DF, diante de descumprimento, a Administração Pública poderá aplicar multa de 0,1%, por dia, incidente sobre o valor atualizado do contrato, sendo que a soma dos valores básicos da multa moratória será limitada a 10% do valor do contrato. São hipóteses de não aplicação da multa: atestado da autoridade pública da existência e aplicação do Programa de Integridade e cumprimento extemporâneo (art. 8º da Lei 6112/18). Destaque-se que, além de implicar inscrição da multa em dívida ativa da pessoa jurídica sancionadora e de constituir justa causa para rescisão contratual, o não cumprimento da obrigação implica impossibilidade da empresa de contratar com a Administração do DF por 2 anos ou até efetiva comprovação de implantação e aplicação do Programa (art. 10 da Lei 6112/18).

Outras iniciativas

Além das leis aqui tratadas, existem alguns Projetos de Lei em trâmite voltados à obrigatoriedade de implantação de Programa de Integridade no âmbito federal, tais como: (i) Projeto de Lei n 7149/2017, em trâmite na Câmara dos Deputados, que propõe alterar a Lei 12.846/13, para inserir determinação de que as pessoas jurídicas que celebrarem contrato com a administração pública deverão desenvolver programas de compliance; (ii) Projeto de Lei nº 435/2016, em trâmite no Senado Federal, que propõe condicionar a eventual avaliação de programa de compliance de uma empresa para fins de aplicação das sanções à existência de um gestor independente que efetivamente possa certificar seu funcionamento correto. Há, ainda, iniciativas em vigor disciplinando a aplicação da Lei da Empresa Limpa no âmbito estadual, tais como os Decretos n. 3956-R/16, alterado pelo Decreto 3971-R/16 (Espírito Santo), n. 60.106/14 (São Paulo) e n. 10.271/14 (Paraná). 

Diante desse recente movimento no sentido de exigir Programas de Integridade efetivos de pessoas jurídicas que contratem com o Poder Público, é de extrema importância que as empresas, fundações, associações e até mesmo sociedades estrangeiras com sede, filial ou representação no Brasil atentem à obrigação de possuir ou adequar seus Programas de Integridade à legislação em vigor.

*Luiz Eduardo Salles e Ingrid Santos são, respectivamente, sócio e advogada sênior da área de Compliance do Azevedo Sette Advogados. Contribuiu com pesquisa a estagiária Victoria Codogno Bianqueti.

Notas

(1) A Lei Distrital n. 6112/2018 está disponível em: https://www.tc.df.gov.br/SINJ/Norma/3bf29283d9ea42ce9b8feff3d4fa253e/Lei_6112_02_02_2018.html. Acesso em: 26/2/18.

(2) A Lei Estadual n. 7753/2017 do Estado do Rio de Janeiro está disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/f25edae7e64db53b032564fe005262ef/0b110d0140b3d479832581c3005b82ad?OpenDocument&Highlight=0,7753. Acesso em: 26/2/2018.

Legislação mencionada

BRASIL. Lei nº 12846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.

BRASIL. Decreto nº 8420, de 18 de março de 2015. Regulamenta a Lei no 12.846, de 1o de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira e dá outras providências.

DISTRITO FEDERAL. Lei nº 6112, de 2 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre a obrigatoriedade da implantação do Programa de Integridade nas empresas que contratarem com a Administração Pública do Distrito Federal, em todas esferas de Poder, e dá outras providências.

ESPÍRITO SANTO. Decreto 3956-R, de 31 de março de 2016. Regulamenta, no âmbito do Poder Executivo Estadual, a Lei Federal nº 12.846, de 01.08.2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública.

RIO DE JANEIRO. Lei nº 7753, de 17 de outubro de 2017. Dispõe sobre a instituição do programa de integridade nas empresas que contratarem com a Administração Pública do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências.

SÃO PAULO. Decreto nº 60106, de 29 de janeiro de 2014. Disciplina a aplicação, no âmbito da Administração Pública estadual, de dispositivos da Lei federal nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. 

PARANÁ. Decreto nº 10271, de 21 de fevereiro de 2014. Regulamenta no âmbito da Administração Pública do Estado do Paraná a Lei Federal nº 12.846/2013, que regulamenta a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, e dá outras providências.