Mulheres, Privacidade e Internet: Autodeterminação e Proteção dos Dados Pessoais


Mulheres, Privacidade e Internet: Autodeterminação e Proteção dos Dados Pessoais


Por Lorena Pretti Serraglio, Camilla Chicaroni, Isabella Aragão e Bruna Toniolo

O conceito de privacidade é uma forma de autodeterminação inerente às estruturas sociais contemporâneas e que integra um desafio maior: as reivindicações femininas por igualdade, dignidade, cidadania e democracia. Tais direitos estão intimamente ligados aos princípios balizadores da privacidade e proteção de dados pessoais, como transparência das operações, segurança dos dados, não discriminação, cumprimento da finalidade do tratamento, e visam a assegurar a liberdade de escolha, associação e expressão, bem como os direitos fundamentais, civis e socioeconômicos. 

Na internet, a privacidade digitalestá intimamente relacionada com o poder de controle dos fluxos de informações pessoais. Mas a gestão da privacidade não é tarefa fácil, tanto para empresas quanto para os indivíduos. Entender o funcionamento da rede, a complexidade das estratégias de negócio, e o que exatamente é feito com os dados pessoais coletados por websites, programas e aplicativos se mostra um dos grandes desafios da atualidade.  

A partir de uma perspectiva de gênero, é expressivo o impacto que as complexidades acima referidas causam às mulheres que, historicamente, enfrentam diversos desafios na busca pelo exercício de seus direitos de igualdade, liberdade de expressão e escolha. E a realidade digital, infelizmente, não diverge da física. Alguns exemplos, no Brasil e no mundo, retratam a exposição que mulheres sofrem dos seus dados, e a maneira pela qual suas informações são utilizadas em detrimento de sua privacidade.  

O primeiro caso a ser retratado é o da utilização de aplicativos de controle de ciclo menstrual2. Tais ferramentas são alimentadas com dados pessoais das usuárias, decorrentes de informações de seus ciclos menstruais como alterações de humor, período fértil, ocorrência de relações sexuais – que, de acordo com a definição do artigo 5º, II da Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira (LGPD), são considerados como dados referentes à saúde ou à vida sexual de uma pessoa natural. O que tais aplicativos fazem com todas essas informações? Medidas de segurança para garantir a inviolabilidade dos dados são adotadas? Há criptografia? Os Termos de Uso e as Políticas de Privacidade retratam a realidade dessas aplicações? Nem sempre as respostas existem ou são claras. 

E o tratamento pouco transparente pode causar prejuízos imensos às usuárias.  O que dizer, então, do compartilhamento indiscriminado desses dados com terceiros? Não é difícil imaginar a venda dos dados gerados pelas usuárias para redes sociais, para fins de marketing direcionado ou venda de produtos complementares (como linhas de absorvente). Tais compartilhamentos, muitas vezes baseados em razões meramente econômicas, geram maiores perigos às informações sensíveis referentes aos ciclos menstruais de mulheres, que se tornam mais vulneráveis à ocorrência de discriminação. Este é um típico exemplo de tecnologia que utiliza informações sobre o gênero e que, em determinadas situações, pode não estar adequada aos princípios da LGPD, como transparência e minimização. 

Outro caso em que é possível relacionar gênero e privacidade, e em território nacional, é o do Programa Bolsa Família. O centro de pesquisas independente InternetLab realizou um estudo3 referente à privacidade de gênero e o programa. Para acesso ao benefício, os potenciais beneficiários, conjunto composto 92% por mulheres, deverão ser inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CADÚnico), que identifica as famílias em situações economicamente vulneráveis por meio de alguns dados, como situação de trabalho e renda. 

É sabido que o programa oferece um adicional às mulheres quando estão grávidas ou durante os 6 meses após o parto, conforme disposto em seu portal4. Para a concessão deste adicional, é necessário que as mulheres realizem um exame de comprovação da gravidez no SUS e que tais resultados sejam apresentados ao Ministério de Desenvolvimento Social. Nota-se, portanto, um intenso compartilhamento de dados referentes à saúde da mulher. A vigência da LGPD trará discussões sobre como o Governo garantirá a essas mulheres, titulares de dados, o papel de protagonistas de suas escolhas e do exercício de seus direitos.

O que dizer, então, de casos em que a privacidade feminina foi tão devassada que a titular de imagens e vídeos passa a ser vítima de revenge porn ou doxing5? Em pesquisa conduzida pelo Amnesty International6, através da análise de milhares de publicações no Twitter, foram identificados relatos de uma grande variedade de ameaças diretas ou indiretas à violência física ou sexual, abuso direcionado a um ou mais aspectos da identidade de uma mulher (como racismo, transfobia, etc.) e assédio direcionado.

E, nesse ponto, quando a violação à privacidade da mulher ocorre em ambiente online, também é possível considerar o quanto definido pelo comitê da ONU de Eliminação da Discriminação contra a Mulher7, que conceitua violência de gênero como: “a violência direcionada à mulher em razão do seu sexo ou que afeta mulheres de maneira desproporcional e, como tal, é uma violação de seus direitos humanos”. Partindo dessa definição, resta muito clara a ocorrência de violência contra as mulheres no ambiente digital, como em casos documentados referentes a exposições de imagens e informações sensíveis em redes sociais. 

Tratar de privacidade digital sob uma perspectiva de gênero mostra-se imprescindível, principalmente considerando que a vulnerabilidade e a discriminação das mulheres, que já ocorre em tantas situações reais do cotidiano, estende-se, cada vez mais, para o meio virtual.  A superação dos desafios femininos enfrentados para o alcance da igualdade de gênero na privacidade digital é contínua e espera-se que as novas tecnologias mundiais sejam pensadas, by design, de maneira a garantir, integralmente, os direitos à privacidade e à proteção de seus dados pessoais, reflexos de suas personalidades. 


Safernet. Privacidade online e a linguagem oculta da internet. Disponível em: https://new.safernet.org.br/content/privacidade-online-e-linguagem-oculta-da-internet#

Privacy International. No Bodys Business But Mine: How Menstruation Apps Are Sharing Your Data. 09 de setembro de 2019. Disponível em: https://privacyinternational.org/long-read/3196/no-bodys-business-mine-how-menstruation-apps-are-sharing-your-data. Acesso em 27/02/2020.

A realização do upload de informações privadas publicamente com o objetivo de causar alarme ou angústia e compartilhar imagens sexuais ou íntimas de uma mulher sem o seu consentimento.