Mês da Mulher / Série Comemorativa de Artigos | Responsabilidade dos provedores de aplicações de internet pela disseminação não consensual de imagens íntimas


Mês da Mulher / Série Comemorativa de Artigos | Responsabilidade dos provedores de aplicações de internet pela disseminação não consensual de imagens íntimas


Por Camila Taliberti Ribeiro da Silva* 

Atualmente, é incontroverso o fato de que a internet se tornou o meio de comunicação mais importante para o exercício do direito de buscar, receber e expandir informações e ideias de todos os tipos, independentemente das fronteiras (¹). Também pela internet, a liberdade de expressão tomou proporções nunca antes imaginadas, ampliando o acesso à diversidade cultural, criatividade e inovação.

Por outro lado, não se pode ignorar que a internet é capaz de disseminar, em larga escala, conteúdos que flagrantemente são ilícitos – como discursos de ódio e pornografia infantil – e outros cuja licitude deve ser interpretada de acordo com a ponderação de interesses dos envolvidos. Nesse último caso, é papel do Poder Judiciário definir, de forma fundamentada, qual grupo de interesses deve prevalecer (²) , pois estamos falando de conteúdos que, em princípio, emanam do exercício do direito de liberdade de expressão, mas que esbarram nos direitos de personalidade previstos no artigo 5º, inciso X, da Constituição – intimidade, vida privada, honra e imagem. 

Diante disso, nos termos do inciso X, pode a pessoa ofendida na Internet buscar tutela do Judiciário para ver assegurado seu direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação ao mandamento constitucional. 

Mas qual seria a responsabilidade dos provedores de aplicações de internet (³) – como as redes sociais – por tais conteúdos, quando publicados por seus usuários?

Antes do advento do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), não havia previsão legal a respeito, mas a discussão no âmbito jurisprudencial girava em torno de se definir qual o papel dos provedores de aplicações de internet sob a perspectiva da persecução de ilícitos. Deveriam assumir uma função editorial, e, assim, responsabilizar-se por ilícitos cometidos por usuários? Deveriam ser isentos por completo de qualquer responsabilidade, de forma que somente aquele que inseriu o conteúdo ilícito pudesse responder por ele? Ou ainda deveriam existir determinadas hipóteses para caracterizar a responsabilidade do provedor, como, por exemplo, o momento em que é oficialmente notificado sobre o conteúdo ilícito? (4) 

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acabou por firmar entendimento no sentido de que a responsabilidade dos provedores seria subjetiva em relação ao conteúdo postado pelos usuários, ou seja, os provedores respondem pelos danos causados pelo conteúdo ilícito somente quando, recebendo uma ordem judicial, não retiram o conteúdo do ar. Esse modelo seria mais afeito à liberdade de expressão dos usuários.

O artigo 19 do Marco Civil veio a positivar esse entendimento, estabelecendo que, para se assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicação somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo infringente se não der cumprimento à ordem judicial que determina sua remoção. 

Também com base no artigo 19 do Marco Civil da Internet, o STJ se posicionou no sentido de que os provedores de busca, como Google e Yahoo, não são obrigados a desindexar resultados de busca considerados ofensivos, pois isso seria, no contexto normativo brasileiro, o equivalente a atribuir-lhe a função de um verdadeiro “censor digital”, que vigiará o que pode ou não pode ser facilmente acessado pelo público em geral, sem qualquer fundamento legal.

Exceção à regra do caput do artigo 19 do Marco Civil foi estabelecida pelo regime especial detalhado no artigo 21, para os casos de disponibilização de conteúdos envolvendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, sem autorização de seus participantes. Nesse caso, o provedor de aplicação é responsabilizado de forma solidária pela violação da intimidade decorrente da divulgação se, após o recebimento de notificação extrajudicial pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover a indisponibilização desse conteúdo de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço. 

Essa norma decorreu de uma demanda presente nos trabalhos legislativos de aprovação do Marco Civil da Internet, no sentido de se proteger situações infelizmente usuais no atual contexto de massificação do acesso à Internet, em que conteúdos de natureza íntima viralizam na rede sem a autorização da(s) pessoa(s) retratada(s). (5)  

Embora não seja propriamente física, a divulgação de imagens íntimas sem consentimento trata-se de mais um tipo de violência de gênero (6) que comumente presenciamos em nossa sociedade. A obra “O Corpo é o Código”, publicada pelo InternetLab, centro independe de pesquisa sobre direito e tecnologia, revela, por meio de resultados de pesquisa de jurisprudência, entrevistas e acompanhamento da mídia, que, com poucas exceções, é o sexo feminino que é afetado, ainda que a exposição seja de um casal heterossexual. Muitas vezes, a divulgação não consentida vem acompanhada de discursos no sentido de que a mulher “não deveria ter feito isso” (ter sido deixada fotografar ou filmar nua), como normativa primordial, a se sobrepor ou mesmo substituir a condenação moral do compartilhamento não autorizado das imagens. (7)  

Porém, é importante ressaltar que a jurisprudência é pacífica no sentido de que, para que seja configurada a responsabilidade civil, é irrelevante que a exposição inicial da vítima tenha acontecido de forma consentida. 

Depreende-se do artigo 21 que (i) não é necessária ordem judicial para remoção do conteúdo, bastando que a vítima notifique extrajudicialmente o provedor com elementos que permitam a identificação do conteúdo apontado como violador da intimidade – nesse sentido, o STJ entende ser necessária a indicação da URL (Uniform Resource Locator) onde se encontra o conteúdo; e (ii) a responsabilização do provedor é condiciona à comprovação de que o mesmo tenha agido de modo a “deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo”, ou seja, se o conteúdo foi devidamente removido, não há responsabilização do provedor, mas tão somente do usuário que divulgou o conteúdo ilicitamente.

Essa normativa tem como finalidade estimular o provedor de aplicações de internet a remover o conteúdo o quanto antes, sem obrigar a vítima a buscar tutela judicial – o que pode levar a vítima a sérios danos psicológicos em virtude da rapidez que o conteúdo se dissemina na rede. 

Assim, a fim de tornar eficaz e dar rápido cumprimento à notificação extrajudicial, os provedores de aplicações de internet devem fornecer a seus usuários canais de comunicação de fácil acesso, bem como divulgar constantemente os procedimentos necessários para a remoção de conteúdo. 

No mais, devido à importância dos provedores de aplicações de internet na sociedade contemporânea, torna-se fundamental seu papel ativo no combate à prática de atos ilícitos na rede.


¹ LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression. United Nations General Assembly, 2011, p. 5. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Opinion/A.66.290.pdf. Acesso em: 20 mar. 2018. 

² TEFFÉ, Chiara. Humor e liberdade de expressão: vale tudo? Disponível em: https://feed.itsrio.org/humor-e-liberdade-de-express%C3%A3o-vale-tudo-3f3e2177b0cc. Acesso em: 20 mar. 2018. 

³ O termo “aplicações de internet” é definido pelo artigo 5º, VII, da Lei 12.965/2014 como “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. Esse termo abarca os mais diversos modelos de negócio na Internet, inclusive as redes sociais (provedores de conteúdo) e os mecanismos de busca como o Google.

4  VALENTE, Mariana Giorgetti; NERIS, Natália; RUIZ, Juliana Pacetta; BULGARELLI, Lucas. O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. InternetLab: São Paulo, 2016, p. 74.

5  SOUZA, Carlos Affonso. LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda., 2016, p. 107.
6  A violência de gênero é um tipo de violência física ou psicológica exercida contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas com base de seu sexo ou gênero, que impacta de maneira negativa em sua identidade e bem-estar social, físico ou psicológico. De acordo com a Organização das Nações Unidas, o termo utiliza-se "para distinguir a violência comum daquela que se dirige a indivíduos ou grupos sobre a base de seu gênero". (Wikipedia, “Violência de Gênero”. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Viol%C3%AAncia_de_g%C3%AAnero#cite_note-5. Acesso em 20/03/2018) 
7  VALENTE, Mariana Giorgetti; NERIS, Natália; RUIZ, Juliana Pacetta; BULGARELLI, Lucas. O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. InternetLab: São Paulo, 2016. Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/pesquisa/o-corpo-e-o-codigo-estrategias-juridicas-de-enfrentamento-ao-revenge-porn-no-brasil. 

*Camila Taliberti Ribeiro da Silva é advogada associada da área de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações, filha da Helena e neta da Ligia (in memorian).

Este artigo é parte da série "Profissionais Azevedo Sette", que divulgará textos com temas relevantes, durante todo o mês de março, redigidos por nossas advogadas e estagiárias das seis unidades Azevedo Sette Advogados, em comemoração especial ao Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março.

Leia ainda, os outros artigos da série especial já publicados

"Moedas virtuais e o financiamento de atividades de mineração no Brasil", redigido por Gabriela Salazar Silva Pinto, advogada associada da área Minerária e filha de Alda Maria e Jorge Henrique.

"O assédio sexual na visão da Justiça do Trabalho", redigido por Luanna Vieira de Lima Costa, sócia da área Trabalhista e mãe do João e pela Sofia Pinheiro Chagas Góes Monteiro, gerente na mesma área e apaixonada por seus cachorros Juca e Nina.

"O direito de laje e descerramento de novas fronteiras", redigido por Alessandra Lima Ganz, advogada coordenadora da equipe de Direito Imobiliário do Azevedo Sette São Paulo, que é formada apenas por mulheres, filha de Neuza.

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"O que o testamento vital pode fazer por você?", de autoria da Ana Paula Terra Caldeira, sócia da área Societária M&A e mãe da Luisa e da Helena, redigido em parceria com a Luiza Elena Cardoso, advogada associada do mesmo departamento e filha da Eni.