Desdobramentos | Audiências Públicas da MP nº 869/18


Desdobramentos | Audiências Públicas da MP nº 869/18


Dando continuidade à série de estudos e ao acompanhamento, por nossa equipe de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia, das Audiências Públicas realizadas no âmbito da análise da Medida Provisória nº 869/2018, o terceiro encontro, realizado em 16/04/2019, abordou o assunto “Tratamento de dados no setor privado, tratamento automatizado e o Direito à Explicação”, com participação do debate o Ministro-Conselheiro da União Europeia no Brasil e representantes da Federação Brasileira de Bancos; da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – Abert; da Associação Brasileira de Rádio e Televisão – Abratel; do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC; do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do Banco Central do Brasil; da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação – Brasscom; da academia, representada pela Universidade PUC-SP; da Federação Assespro; do Ministério da Justiça e Segurança Pública; do SindTele Brasil; e do Instituto Alana. 

Um dos pontos de discussão da audiência foi a questão da obrigação de revisão humana, quando do exercício do direito à explicação, previsto na LGPD, na gestão de dados tratados de forma automatizada. O Instituto de Defesa do Consumidor destacou que, sob o prisma consumerista, o tratamento de dados não pode se sobrepor aos direitos dos consumidores e que, se por um lado, a automação pode gerar eficiência econômica, por outro, é possível que as decisões tomadas por algoritmos sejam revistas pelos mesmos algoritmos que analisaram a questão anteriormente. Desta maneira, se a revisão fosse realizada não por um humano, com criticidade, mas, sim, pelo mesmo algoritmo, o direito de explicação restaria deveras prejudicado. 

De outro lado, a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação afirmou que a revisão por pessoa física não agrega nada ao processo além de maiores custos à operação, não garantindo que a decisão tomada seja melhor do que a realizada por algoritmos – que, inclusive, já superaram a avaliação de humanos em pesquisas técnicas recentes. Ainda neste sentido, o Banco Central do Brasil frisou que a manutenção da exigência de revisão de decisões automatizadas por pessoa humana poderia inibir a entrada de novos agentes econômicos no mercado, gerando impactos para o sistema financeiro. Além disso, salientou que o Código de Defesa do Consumidor brasileiro já estabelece várias obrigações de transparência dos dados e o direito de revisão, não sendo necessário repetir o assunto na LGPD.

Os representantes da academia manifestaram-se no sentido de que a revisão humana não é uma garantia per se, assim como a revisão automatizada. A solução, portanto, seria criar uma governança de algoritmos, garantindo transparência e accountability das decisões automatizadas, possibilitando um direito à explicação eficiente através da emissão de relatórios de impacto para eliminar vieses equivocados ou discriminatórios, por exemplo. Ademais, reforçaram a importância de se manter um diálogo sobre a confiança humana com relação à inteligência artificial.

A sociedade civil, representada pelo Instituto Alana, trouxe um viés inovador de análise da matéria, até então pouco debatido na Comissão. Sua contribuição foi pautada no foco do maior risco de discriminação de crianças e adolescentes, devido ao uso de algoritmos para tratamento de seus dados (como informações escolares, por exemplo). Assim, considerando essa categoria “ultravulnerável” de consumidores e cidadãos, o Instituto consignou a importância de fortalecer a proteção do fluxo de dados e de garantir o direito de explicação sobre o tratamento das informações de crianças e adolescentes, pois estes dados impactarão seu futuro. Ainda, criticou a flexibilização do uso de dados pelo Poder Público, sem prestação de contas e seu livre compartilhamento com o Poder Privado, devido aos riscos gerados para as informações coletadas de crianças e adolescentes; e corroborou a imprescindibilidade da autonomia da ANPD, crucial para o tratamento dos dados pessoais sensíveis de crianças e adolescentes pelo Poder Público.

Por fim, foram levantados outros tópicos relevantes pelos participantes, tais como a necessidade de atribuição de competência sobre o tratamento de dados pessoais à União, para dirimir os conflitos de competência, a defesa pela negativa de extensão de prazo para a entrada em vigor da LGPD pelos entes consumeristas e a sugestão, pelo Ministério da Justiça, de uma estrutura como a do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para a ANPD, garantindo mais recursos, efetividade e força ao órgão. O relator da Comissão, ao final da Audiência Pública, ressaltou que, no limite, trabalharia por uma ANPD autônoma e pelo retorno ao texto original da LGPD, vetado pelo ex-presidente da República, Michel Temer. Ainda, afirmou que a privacidade de dados enfrenta problemas políticos, mas apelou para que o atual governo tenha uma postura ativa no tratamento do tema.

Já no dia 17/04/2019, foi realizada a quarta e última audiência pública da Comissão Mista da análise da MP 869/18, que debateu o tema “Compartilhamento e proteção de dados na saúde e na pesquisa científica”. Os debates reuniram representantes da Agência Nacional de Saúde Suplementar; da Fundação Oswaldo Cruz; do Centro de Pesquisa Independente em Direito e Tecnologia – InternetLab; da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos; da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica – ABMD; do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife - IP.Rec; da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização – CNSEG; e da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde. Houve, ainda, breve participação de estudantes e pesquisadores da Universidade de Brasília – UNB, representando o Laboratório de Políticas Públicas e Internet.

A discussão deu ênfase à questão da exceção à vedação do compartilhamento de dados pessoais sensíveis referentes à saúde, com objetivo de obter vantagem econômica, na hipótese de necessidade de comunicação para a adequada prestação de serviços de saúde suplementar, prevista na MP 869/18. Neste sentido, as opiniões se dividiram, sendo que alguns participantes consideraram que tal dispositivo, potencialmente, violaria princípios fundamentais dos usuários, indo na contramão da lógica protetiva da LGPD e trazendo consequências maléficas como a precificação de seguros de saúde e até mesmo a negação de prestação de procedimentos necessários; enquanto outros acreditam que o compartilhamento desses dados de saúde é extremamente benéfico e entendem que limitar a capacidade de integração dos entes da cadeia produtiva afetaria fortemente o atendimento do paciente e os direitos dos cidadãos. 

Interessante notar que o InternetLab se posicionou pela necessidade de uma regulação do compartilhamento de dados de saúde sensíveis, que deveriam ser anonimizados sempre que possível, de maneira a evitar eventuais malefícios e benefícios, que pudessem gerar algum tipo de discriminação entre os usuários do serviço de saúde. Já os representantes da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos e da ABMD entenderam que o compartilhamento de dados para a adequada prestação de serviços de saúde suplementar deveria ocorrer apenas em casos que representassem algum benefício aos usuários, protegendo os direitos dos cidadãos envolvidos, ao mesmo tempo em que permitindo a inovação tecnológica. Ainda, a CNSEG frisou os benefícios do compartilhamento desse tipo de dado sensível para os pacientes e para os profissionais da saúde – como a possibilidade de discussão de diagnóstico com profissionais de outras especialidades e efetivação de políticas públicas, por exemplo –, defendendo que o objetivo não é apenas a obtenção de vantagem econômica, mas, também, a proteção do beneficiário e a viabilidade da atividade realizada.

Outros importantes pontos levantados foram a inadequação do termo “entidades sanitárias” para descrever os responsáveis pela realização de procedimentos para a tutela da saúde – o que resultou, provavelmente, de um erro de tradução da previsão correspondente no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados Europeu (GDPR) –, tendo em vista que deveria abranger todo o setor de saúde brasileiro; e a defesa, pelo IP.Rec, de que órgãos de pesquisa científica não tenham fins lucrativos para evitar abusos por órgãos de direito privado (como o perfilamento de eleitores e direcionamento de conteúdo eleitoral, por exemplo), enquanto a ABDM se posicionou pela importância de que órgãos privados (como medicina diagnóstica e universidades privadas) sejam considerados órgãos de pesquisa, a fim de possibilitar suas atividades. Ainda, ressaltou-se a necessidade de concessão de um prazo maior de adequação à LGPD.

Por fim, importante frisar que, na ocasião, a Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos reforçou a relevância da criação da ANPD com a maior urgência possível, sugerindo um modelo provisório em que o órgão pertenceria à Administração Pública, mas seria alocado na mais alta hierarquia para possibilitar o tratamento de dados imparcial de entes privados e públicos, além de possuir um conselho multissetorial não-remunerado, capaz de fiscalizar a atuação da organização e manter um diálogo permanente. No futuro, após superada a incerteza jurídica e havendo uma “folga orçamentária”, o órgão seria tirado da Administração Direta, para funcionar em regime especial autárquico e independente. 

Com o fim das audiências públicas, que proporcionaram debates equilibrados e diversificados, será realizada a sétima reunião da Comissão Mista no dia 24 de abril de 2019, para análise e discussão do relatório e das conclusões finais sobre o tema.

A equipe de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia do Azevedo Sette continuará acompanhando os debates e desdobramentos sobre o assunto para trazer aos nossos clientes as informações mais relevantes.

São Paulo, 23 de abril de 2019

Ricardo Barretto Ferreira

Juliana Sene Ikeda

Lorena Pretti Serraglio

Vitor Koketu

Isabella Aragão