Coronavírus e o massivo tratamento de dados pessoais ao redor do mundo


Coronavírus e o massivo tratamento de dados pessoais ao redor do mundo


Por Ricardo Barretto, Lorena Pretti, Isabella Aragão, Camila Chicaroni e Bruna Toniolo*

Reportado pela primeira vez à Organização Mundial da Saúde – OMS (World Health Organization – WHO) devido à uma pneumonia de causa desconhecida detectada na cidade de Wuhan, na China, em 31 de dezembro de 2019, o novo coronavírus SARS-CoV-2 se trata de um vírus que causa infecções respiratórias leves a moderadas em seres humanos e animais, denominadas “doenças coronavírus 2019” (abreviadamente, COVID-19). Até a manhã do dia 04 de março deste ano, foram confirmados 93.094 casos em 77 países, sendo registradas 3.198 mortes[2]. Com o aumento contínuo do número de casos da doença e do número de países afetados, a OMS elevou a avaliação do risco de espalhamento e impacto da COVID-19, classificando-a como ameaça internacional de nível “muito alto”.

No cenário brasileiro, após suspeitas de infecção, o primeiro caso confirmado da doença ocorreu na semana passada, em São Paulo, em um homem de 61 (sessenta e um) anos que esteve na Itália no início de fevereiro, coincidindo com o período em que ocorreu a “explosão” de casos de infecção no país europeu. Ainda no início dessa semana, o segundo caso confirmado da doença em São Paulo foi diagnosticado e divulgado, permanecendo o paciente em isolamento domiciliar, mesmo sem apresentar sintomas.

Entretanto, antes mesmo dessas ocorrências, o Brasil já vinha adotando ações para o combate e prevenção ao coronavírus – inclusive medidas legislativas. Neste sentido, o Projeto de Lei (PL) nº 23/2020 foi apresentado pela Câmara dos Deputados, a fim de dispor sobre as medidas sanitárias para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. O PL ainda deu origem à Lei nº 13.979/2020, sancionada pelo Presidente da República, que definiu conceitos como “isolamento” e “quarentena”, além de estabelecer as medidas que poderão ser adotadas para garantir a proteção da coletividade. 

A partir dessa perspectiva, grande ponto de atenção no meio da crise do coronavírus é a utilização massiva de dados pessoais daqueles que estão sob investigação da doença ou com diagnóstico confirmado. Em se tratando de dados pessoais de saúde, a questão se torna ainda mais sensível, principalmente pela possível discriminação que os pacientes infectados poderiam sofrer em caso de divulgação não autorizada de suas informações pessoais. A existência da obrigação legal supra referida, entretanto, constitui-se de autorização legal expressa para o compartilhamento desses dados pessoais. 

Ainda neste sentido, mesmo que a Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira – LGPD (Lei nº 13.709/18) só entre em vigor em agosto deste ano, é interessante notar que sua aplicação seria extremamente relevante na hipótese de compartilhamento de dados sensíveis de saúde sobre os infectados ou suspeitos de infecção do coronavírus. 

Isso porque, de acordo com o artigo 11 da LGPD, o tratamento de dados pessoais sensíveis poderá ocorrer quando for indispensável para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro – o que, diante da ameaça representada pelo coronavírus, se verifica no caso concreto. Ademais, a indicação de uma finalidade específica para o tratamento dessas informações (qual seja, evitar a propagação da doença) coaduna com o princípio da finalidade, previsto no artigo 6º, inciso I, do diploma legal.

Em âmbito internacional, na luta contra o surto deste novo coronavírus, muitos países, além de fornecer apoio médico de emergência às pessoas afetadas pelo vírus, impuseram quarentenas e restringiram viagens e atividades ao ar livre aos seus cidadãos. Para controlar o surto e rastrear a propagação do vírus, autoridades sanitárias e outras partes interessadas – que variam desde companhias aéreas e operadoras ferroviárias, até empresas de administração de propriedades, por exemplo – coletaram uma grande quantidade de dados pessoais, incluindo informações de indivíduos que viajaram recentemente para Wuhan ou que estiveram em contato com aqueles que desenvolveram sintomas de infecção. Com isso, preocupações sobre privacidade e possíveis discriminações contra pessoas infectadas começaram a surgir.

Além da coleta massiva de dados, a tecnologia está sendo largamente utilizada para fiscalizar os avanços da doença e identificar os pacientes infectados. Empresas privadas chinesas têm contribuído para o mapeamento dos casos da doença através da utilização de Big Data. O gigante de buscas chinês Baidu, por exemplo, divulgou um mapa epidêmico que mostra a localização de pessoas infectadas e suspeitas de infecção, em tempo real, para que as pessoas evitem estes lugares. Já o Qihoo 360, a maior empresa de cibersegurança da China, está oferecendo um aplicativo que permite aos usuários verificar se eles estiveram em um trem ou avião com alguém que contraiu o vírus.

Ainda na China, as cidades mais afetadas pelo coronavírus estão utilizando drones para pulverizar desinfetantes sobre determinadas áreas, dispersar reuniões públicas e emitir avisos, advertindo pessoas a usarem máscaras. Na mesma lógica, a cidade de Moscou, na Rússia, está utilizando tecnologias de reconhecimento facial para monitorar e garantir que os pacientes com coronavírus permaneçam em quarentena, permitindo que as autoridades possam rastrear quaisquer transgressores. 

Recentemente, a China iniciou, também, um experimento em massa, através de um aplicativo de monitoramento da saúde de seus cidadãos nos seus celulares, que classifica a necessidade (ou não) de isolamento de cada indivíduo por conta do coronavírus, por meio de QR Codes e bandeiras de cores verde, amarela ou vermelha. O software, criado pela empresa Ant, ligada à gigante chinesa Alibaba, compara “relatórios de integridade pessoal” e informações do sistema de saúde chinês para combater a propagação do coronavírus, mas também abastece a polícia chinesa com informações pessoais dos cidadãos.

Em resposta às preocupações que o mapeamento de casos de infectados ou suspeitos de infecção pelo coronavírus tem causado quanto à privacidade e proteção de dados pessoais da população mundial diante da doença, algumas medidas iniciais vêm sendo tomadas pelas autoridades de nações que enfrentam esse desafio.

Neste sentido, além da própria lei brasileira, também é possível citar as iniciativas da Comissão Nacional de Saúde da China, por exemplo, que emitiu um aviso descrevendo os requisitos de proteção de dados pessoais no contexto da prevenção e controle do coronavírus. Outrossim, a Administração do Ciberespaço da China (CAC), principal regulador chinês em segurança cibernética e privacidade de dados, emitiu uma “Circular para Garantir Proteção e Utilização Eficaz de Informações Pessoais e Utilização de Big Data para Apoiar Esforços Conjuntos de Epidemias Prevenção e Controle” (Circular CAC), para fornecer orientações detalhadas sobre a proteção de dados pessoais nas circunstâncias atuais.

Restam claros os desafios quanto à coleta, uso e compartilhamento indiscriminado de dados pessoais de cidadãos com base na justificativa de combate à propagação do coronavírus. Para o presente, espera-se que as autoridades, e as entidades privadas e públicas, nacionais e internacionais, passem a considerar diretrizes de proteção de dados pessoais em seus tratamentos para o acompanhamento do coronavírus, garantindo um nível adequado de proteção à privacidade dos cidadãos, ainda que em meio a uma epidemia global. 

No futuro, além da recomendação de adoção de boas práticas de tratamento de dados pessoais quando da gênese de inovações tecnológicas – tais como a criação de tecnologias privacy by design, que considerem a proteção de dados pessoais desde a concepção de produtos –, espera-se que seja respondida a seguinte pergunta: o que acontecerá com a gigantesca base de dados pessoais coletada durante o surto de coronavírus após o fim dessa crise? 

Para receber as principais novidades relacionadas à privacidade e proteção de dados, em âmbito nacional e internacional, acompanhe a equipe de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações do Azevedo Sette Advogados.


CDC – Centers for Disease Control and Prevention. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Situation Summary. Atualizado em 27 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nCoV/summary.html. Acesso em 28/02/2020.

World Health Organization, Esri | WHO. Novel Coronavirus (COVID-19) Situation. Última atualização em: 28/02/2020. Disponível em: https://experience.arcgis.com/experience/685d0ace521648f8a5beeeee1b9125cd. Acesso em 02/03/2020.

Folha de S. Paulo – UOL. OMS eleva a ameaça internacional do coronavírus para muito alta. São Paulo, 28 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/oms-eleva-a-ameaca-internacional-do-coronavirus-para-muito-alta.shtml. Acesso em 28/02/2020.

Senado Federal. Projeto de Lei nº 23, de 2020. Autoria: Câmara dos Deputados, apresentação em 04 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/140490. Acesso em 28/02/2020. 

BRASIL. Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União: Brasília, publicado em 07/02/2020. 

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União: Brasília, publicada em 15/08/2018.

BBC. Coronavírus: o que diferentes países estão fazendo para resgatar seus cidadãos e evitar avanço do surto. News – Brasil, 30 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51304336. Acesso em 02/03/2020.

South China Morning Post. Coronavirus accelerates China’s big data collection but privacy concerns remain. 26 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.scmp.com/tech/apps-social/article/3052232/coronavirus-accelerates-chinas-big-data-collection-privacy. Acesso em 02/03/2020.

G1 – Globo.com. Drones são usados pela polícia para alertar sobre o risco do novo coronavírus na China. Ciência e Saúde – G1, 05 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/05/drones-sao-usados-pela-policia-para-alertar-sobre-o-risco-do-novo-coronavirus-na-china.ghtml. Acesso em 02/03/2020.

REUTERS. Moscow deploys facial recognition technology for coronavirus quarantine. Technology News, 21 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-china-health-moscow-technology/moscow-deploys-facial-recognition-technology-for-coronavirus-quarantine-idUSKBN20F1RZ. Acesso em 02/03/2020.

Veja. Coronavírus: China testa aplicativo de controle social. Mundo, publicado em 02 de março de 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/coronavirus-china-testa-aplicativo-de-controle-social/. Acesso em 02/03/2020.

Data Protection Report. Personal data protection in the time of coronavirus (Covid-19). Compliance and risk management, 25 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.dataprotectionreport.com/2020/02/personal-data-protection-in-the-time-of-coronavirus-covid-19/. Acesso em 02/03/2020.