Tributação das Pessoas Jurídicas na prestação de serviços intelectuais à luz do entendimento pacificado pelo STF


Tributação das Pessoas Jurídicas na prestação de serviços intelectuais à luz do entendimento pacificado pelo STF


A Lei nº 11.196/05, fruto da conversão da chamada "MP do Bem" (MP nº 252/2004), regularizou expressamente, em seu artigo 1291, a prestação de serviços realizada por profissionais liberais em caráter personalíssimo ou não, mediante a constituição de pessoa jurídica.

Pela regra acima, os serviços intelectuais, ainda que executados em caráter personalíssimo - como exige a natureza de diversos serviços realizados por profissionais liberais que optam pela constituição de pessoa jurídica para a consecução de seus trabalhos -, quando prestados por pessoa jurídica sujeitam-se às regras de tributação desta, regularmente.

O art. 129 da Lei nº 11.196/05 surgiu em um cenário em que a Receita Federal vinha, constantemente, contestando a contratação de serviços prestados por pessoas jurídicas, ao entendimento de que se tratava de uma maneira de driblar o pagamento de tributos (eis que a tributação conforme as regras aplicáveis à pessoa física supera à da pessoa jurídica), bem como disfarçar a existência de vínculos empregatícios (e, consequentemente, reduzir a arrecadação de contribuições sociais).

No intuito de pacificar tais discussões sobre o regime tributário aplicável às sociedades constituídas para a prestação de serviços de caráter pessoal, externar a validade de criação e tributação via pessoa jurídica e inibir as ações fiscais acerca do assunto, editou-se o art. 129 da Lei nº 11.196/05. E, de fato, após a edição dessa norma, as autuações com este enfoque diminuíram substancialmente por um tempo.

No entanto, desde o final do ano de 2019, diversas pessoas físicas vêm sendo surpreendidas com o recebimento de autuações visando à cobrança de Imposto de Renda, ao argumento de que os serviços formalmente prestados pelas pessoas jurídicas das quais fazem parte eram decorrentes, sob a ótica da fiscalização, de uma simulação contratual, não sendo apresentado, no entanto, qualquer lastro probatório pelo Fisco.

As Autoridades Fiscais, negando vigência ao art. 129 da Lei nº 11.196/05, simplesmente desconsideram os negócios jurídicos formalmente pactuados entre as pessoas jurídicas e, sem demonstrar qualquer evidência de fraude, imputam a obrigação tributária à pessoa física, sócia da sociedade prestadora do serviço que tenha realizado a atividade geradora da tributação.

Nesse contexto, a Confederação Nacional da Comunicação Social – CNCOM ajuizou, em outubro de 2019, a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC nº 66, perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteando a confirmação da constitucionalidade do art. 129 da Lei nº 11.196/2005, a fim de afastar as pretensões de se negar vigência à norma, expressa ou implicitamente.

No final do ano passado, mais especificamente em 18/12/2020, o julgamento da ADC nº 66 foi finalizado, tendo sido legitimada, por 8 votos a 2, a constitucionalidade do art. 129 da Lei nº 11.196/2005, ante à sua compatibilidade com o princípio da livre iniciativa, previsto no art. 1º, IV, da Constituição Federal.

Prevaleceu o entendimento da Ministra Relatora Cármen Lúcia, que votou pela procedência da ação (no que foi acompanhada por outros 7 Ministros), nos seguintes termos:

A norma do art. 129 da Lei n. 11.196/2005 harmoniza-se com as diretrizes constitucionais, especialmente com o inc. IV do art. 1º da Constituição da República, pelo qual estabeleceu a liberdade de iniciativa situando-a como fundamento da República Federativa do Brasil. Dessa liberdade econômica emanam a garantia de livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e o livre exercício de qualquer atividade econômica, consagrados respectivamente no inc. XIII do art. 5º e no parágrafo único do art. 170 da Constituição da República. – destacou-se

Salienta-se que, apesar da Ministra Relatora Cármen Lúcia ter preconizado a mínima interferência na liberdade econômica das empresas, seu voto deixou assegurada a possibilidade de aferição da regularidade da contratação em cada caso concreto, fazendo referência ao art. 50 do Código Civil (abuso de personalidade jurídica)2. Nos termos do entendimento consignado pelo Supremo, a eventual desconsideração da prestação de serviço intelectual, de forma personalíssima por seu sócio, por meio de pessoa jurídica, pode se dar nas hipóteses de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o que precisa ser devidamente comprovado.

Assim, como o julgamento da ADC nº 66 possui caráter geral e vinculante perante a Administração Pública e o Poder Judiciário3, enquanto vigente no ordenamento jurídico, o art. 129 da Lei nº 11.196/2005 é de observância obrigatória e deve ser respeitado pela Administração Tributária, que não pode escolher aplicá-lo ou não. Caso o Fisco entenda pela existência de abuso da personalidade jurídica, deve comprovar a fraude, sendo defensável ainda a necessidade de procedimento judicial próprio e prévio, atendendo ao disposto no art. 50 do Código Civil. 

Conclui-se que o julgamento favorável da ADC nº 66 é um alento aos profissionais liberais que constituem pessoa jurídica para a prestação de seus serviços, ao passo que, caso o Fisco não comprove o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial nos termos do artigo 50 do Código Civil, estará obrigado a aplicar a legislação tributária relativa às pessoas jurídicas e, consequentemente, não poderá tributar as receitas decorrentes dos serviços como se tivessem sido prestados por pessoas físicas. 

Bibliografia:

Acervo interno do Escritório

Votos da ADC nº 66 (site STF)

Exposição de Motivos da Lei 11.196/05

1 Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.

2 Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

3 Lei nº 9.868/1999

Art. 28. – (...) Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.